Sob ameaças e violência, comunidades de fecho de pasto lutam pela regularização fundiária no Oeste da Bahia

Kevin Damasio

Kevin Damasio

Jornalista focado em temas socioambientais e científicos

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Fotos de André Dib

Povos tradicionais vivem da solta do gado, agricultura familiar e extrativismo no Cerrado em pé há mais de um século, mas áreas estão sendo disputadas por grandes fazendas. A Ambiental procurou as empresas citadas em processos e pelos fecheiros, mas não recebeu respostas.

Uma estrada de terra batida, que sai da BR-349, nos conduz por uma região do Cerrado que resiste ao avanço do agronegócio. Essa área é secularmente ocupada por quatro comunidades tradicionais no Vale do Rio Correntina, no oeste da Bahia. Entretanto, as cercas atualmente encontradas ali não são dos povos dos fechos de pasto, e sim de um grande complexo de reservas legais.

“Fazendeiros da região próxima da divisa com o estado de Goiás desmataram 100% das suas áreas, e vieram fazer a compensação das suas reservas legais em cima do território da comunidade tradicional que já existia ali há 200 anos”, observa Marcos Rogério Beltrão, 42 anos, morador de Correntina e criador do Movimento Ambientalista Grande Sertão Veredas, focado na defesa dos povos e do meio ambiente do Cerrado. Organizações ambientais e de direitos humanos denominam essa conduta como “grilagem verde”. A Ambiental procurou as empresas citadas em processos e pelos fecheiros, mas não recebeu respostas.

O Código Florestal determina que, no Cerrado, 20% da área total de um imóvel rural seja coberta por vegetação nativa. Na reformulação da legislação, em 2012, o artigo 66 permitiu que a compensação da Reserva Legal (RL) seja feita fora do perímetro da propriedade, desde que no mesmo bioma. Isso vale para imóveis rurais que já existiam até 22 de julho de 2008, mas tinham remanescentes de vegetação inferiores ao percentual estabelecido.

Em dezembro de 2011, a Bahia tinha aprovado uma legislação similar, estabelecendo que a compensação da reserva deveria acontecer dentro do estado, “preferencialmente na mesma bacia hidrográfica e no mesmo bioma”. Nessa época, o Banco Central baixou uma resolução condicionando o valor do crédito agrícola à comprovação de áreas de preservação permanente e RL.

Gado na comunidade de fundo e fecho de pasto Brejo Verde, em Correntina. Os fecheiros são conhecidos por criar o gado solto, de forma comunitária, uma prática de mais de 200 anos no oeste da Bahia.  Foto: André Dib / Ambiental Media.

Segundo um relatório da Articulação de Resistência ao Matopiba, da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, imóveis rurais cadastrados no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Vale do Rio Correntina são desmembramentos de quatro matrículas de “fazendas fantasmas” – ou seja, que não seguiriam os critérios legais para registro, como delimitação, dimensão e registro anterior válido. Essas propriedades teriam sido abertas por empresários, imobiliárias e banqueiros a partir dos anos 1980 em aproximadamente 98,3 mil hectares.

Desde maio de 2023, 19 propriedades, que compreendem 13 mil hectares – 3,2 mil de reserva legal –, estão com as matrículas bloqueadas em uma ação discriminatória. O Estado da Bahia identificou indícios de irregularidades nas cadeias sucessórias dos imóveis, sem encontrar evidências da destinação das terras públicas a particulares, e reivindica a área por meio da ação. O processo ainda está em curso, mas, com o bloqueio, as matrículas das propriedades não podem ter seus limites ou proprietários alterados, entre outras restrições.

Tradições centenárias sob ameaça

No Capão do Modesto, cerca de 60 famílias mantêm práticas centenárias típicas do oeste da Bahia: o extrativismo de frutos silvestres, a agricultura de subsistência e a criação do gado solto no gerais – como chamam aqui as áreas de cerrado propriamente dito, uma das 11 formações de vegetação do bioma. Conforme o agronegócio avançava sobre o chapadão, as comunidades cercaram as terras de uso coletivo para frear o ímpeto das monoculturas. Essas áreas foram denominadas “fechos de pasto”.

Vista aérea de uma paisagem rural marcada por grandes plantações. No centro da imagem, uma estrada de terra segue em linha reta até o horizonte, dividindo dois amplos campos agrícolas de cores diferentes. À frente, um corredor de vegetação nativa em formato triangular se estreita em direção à estrada. O contraste entre a mata remanescente e as áreas cultivadas evidencia a fragmentação do ambiente natural. O céu é claro, com poucas nuvens.

Área de Cerrado desmatada no município de Correntina, oeste da Bahia. “Fazendeiros […] desmataram 100% das suas áreas e vieram fazer a compensação das suas reservas legais em cima do território da comunidade tradicional que já existia ali há 200 anos”, diz o ambientalista Marcos Rogério Beltrão, morador de Correntina. Foto: André Dib / Ambiental Media.

A atmosfera tensa se revela logo na entrada da comunidade. Passamos por uma casa onde, segundo relatos de moradores, vivem olheiros contratados por grileiros. Mais à frente, onde começam as propriedades individuais dos fecheiros, dois homens em motos nos observam atentamente conforme entramos na casa de uma liderança. Pouco depois, um deles retorna à estrada sem saída, que corta a comunidade por 1 quilômetro, e inicia uma sequência de idas e vindas barulhentas, aparentemente como forma de intimidação.

Antônio Silva, 50 anos, é descendente de Modesto dos Santos, um retirante da seca no sertão baiano que chegou ao Vale do Rio Correntina na segunda metade do século 18 e fundou a comunidade. Entre os rios Santo Antônio e Correntina, encontrou abundância de água e terras férteis para cultivar alimentos em uma mancha de vegetação arbórea – denominada “capão” – rodeada pelo gerais. O gado pastava livremente pelo chapadão baiano e não raro ia até a divisa do estado.

“Na solta era bem aberto. Ia pegar o gado daqui junto com o gado de Posse, de Goiás. Era uma rotina bem extensa. E foi se estreitando. Hoje, a gente só tem 3% do fecho que tinha antes”, estima Silva. “Na década de 1980, os grileiros chegaram e impediram a gente de usar o fecho. Foram cercando e impedindo a gente de passar com os animais para comerem o pasto nativo.”

Na década de 1970, o governo estadual promoveu um projeto de “reflorestamento” no oeste da Bahia, com o objetivo de converter a vegetação nativa do Cerrado – a savana mais biodiversa do planeta – em pinus e eucalipto, espécies exóticas. O projeto não prosperou, mas incentivou a especulação fundiária.

Vista aérea do Fecho do Cupim, no Vale do Rio Correntina. As famílias mantêm práticas centenárias típicas do Oeste da Bahia: o extrativismo de frutos silvestres, a agricultura de subsistência e a criação do gado solto.

Vista aérea do Fecho do Cupim, no Vale do Rio Correntina. As famílias mantêm práticas centenárias típicas do oeste da Bahia: o extrativismo de frutos silvestres, a agricultura de subsistência e a criação do gado solto. Foto: André Dib / Ambiental Media.

Mapa em tons de cinza do Oeste da Bahia mostrando a localização de comunidades tradicionais de fecho de pasto. As áreas dos fechos aparecem destacadas em azul claro, com rótulos para Vereda da Felicidade, Cupim, Capão do Modesto e Porcos, Guará e Pombas. Diversos rios são representados em azul escuro, incluindo Rio Correntina, Rio Santo Antônio, Rio Arrojado e Rio Formoso. O mapa também marca as cidades de Correntina e Santa Maria da Vitória. No canto inferior esquerdo, um mapa menor situa a região ampliada dentro da Bahia e da bacia do Rio São Francisco. Uma legenda identifica as áreas sombreadas como “Fechos de pasto do Oeste da Bahia”.

Localização dos fechos de pasto no oeste da Bahia. Fonte: Associação Comunitária dos Pequenos Criadores do Fecho de Pasto de Clemente. Mapa: Miguel Vilela / Ambiental Media.

A Ambiental Media identificou, no Cadastro Estadual Florestal de Imóveis Rurais (Cefir), 68 propriedades sobrepostas total ou parcialmente ao Capão do Modesto. Esses imóveis rurais foram cadastrados desde 2005 e contam com 83 reservas legais que, na soma das áreas declaradas, abrangem 8,2 mil dos 11.264 hectares da gleba. Com essa perda de espaço, o rebanho bovino dos fecheiros caiu de 2 mil para 500 cabeças.

Desde que assumiu a presidência da Associação Comunitária de Preservação Ambiental dos Pequenos Criadores do Fecho de Capão do Modesto, em 2014, Silva conta viver sob ameaças, agressões físicas e psicológicas, além da frequente destruição de estruturas do fecho. Hoje faz parte do programa de defensores ambientais da ONG Global Witness, que também construiu a sede da associação. Sua casa é cercada por telas de arame e vigiada por câmeras de segurança.

Antônio Silva conta que, em uma manhã de abril de 2021, tinha saído para levar os filhos à escola e sua mãe ligou para alertá-lo: cinco pistoleiros tinham invadido a casa dele e a ameaçado com uma arma apontada para o rosto. Quando retornou, os invasores não estavam mais lá.

Vinte dias depois, à meia-noite de 30 de abril, pistoleiros estacionaram no quintal. Na escuridão, eles conversavam alto dentro do carro, lembra Silva. “Um abriu a porta e deu dois tiros aqui”, conta. Ninguém foi atingido. 

Na tarde do dia seguinte, três indivíduos não identificados rondavam a casa. Na delegacia de Correntina, ao registrar o boletim de ocorrência, Silva afirmou que “já foi intimidado algumas vezes por prepostos da Fazenda Xanxerê e da Fazenda Talismã”. Segundo a Polícia Civil da Bahia, o fato não foi considerado delituoso.

A Ambiental enviou questionamentos sobre o conflito fundiário no Capão do Modesto à Agropecuária Sementes Talismã, mas não obteve retorno até a publicação. A reportagem pediu ainda posicionamentos à Bergamaschi Agro Ltda sobre a Fazenda Xanxerê e seu sócio-administrador, Luiz Carlos Bergamaschi, e também não teve resposta.

Vista aérea de uma cidade pequena com casas de telhados vermelhos, áreas verdes e ruas tranquilas. Um rio de águas rasas e claras atravessa o centro urbano, com pequenas quedas d’água, ilhotas e vegetação ciliar. Há passarelas e calçadas margeando o rio, além de palmeiras e árvores oferecendo sombra. Ao fundo, surgem morros cobertos por vegetação seca típica do Cerrado. No lado direito, destaca-se uma igreja grande de fachada rosa claro.

Vista aérea da cidade de Correntina, banhada pelo rio de mesmo nome, no oeste da Bahia. O Correntina é um dos formadores do rio Corrente, em cuja bacia estão 13 municípios baianos. Foto: André Dib / Ambiental Media.

Terra justa

O Ministério Público da Bahia (MP-BA) investiga ameaças e outros crimes contra as comunidades. Em 25 de abril deste ano, foi deflagrada a operação Terra Justa contra uma milícia que atua há mais de dez anos no oeste da Bahia. O processo corre sob sigilo, mas o MP-BA confirmou à Ambiental que o grupo-alvo dos mandados de busca e apreensão prestava serviço a grandes fazendeiros da região do Vale do Rio Correntina, com maior incidência nos fechos de pasto do Capão do Modesto, Porcos, Guará e Pombas, Vereda da Felicidade e Cupim.

Segundo o MP-BA, “o grupo agia por meio de empresa de fachada com registro de segurança privada – sem autorização da Polícia Federal” e praticava “ameaças, lesões corporais e grilagem de terras contra comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto, expulsando famílias posseiras e povos tradicionais de suas terras”.

Duas pessoas foram presas, além de terem sido apreendidos aparelhos eletrônicos, armas e munição. O grupo é investigado pelo crime de milícia privada. O MP-BA não pôde informar os nomes dos presos na operação em cumprimento à Lei de Abuso de Autoridade.

Homem de camisa laranja guia dois bois que puxam um arado de madeira em um campo de terra recém-arada, enquanto outro homem com chapéu de palha conduz o arado; ao fundo, árvores e palmeiras sob um céu azul claro.

Lavradores trabalham a terra com a ajuda de um arado tracionado por bois no povoado Jatobá, uma comunidade de fundo e fecho de pasto às margens do rio Arrojado, município de Correntina, oeste da Bahia.  Foto: André Dib / Ambiental Media.

Batalhas judiciais

A Constituição Estadual da Bahia, de 1989, prevê a concessão de glebas públicas para comunidades de fundo e fecho de pasto, mas as diretrizes para isso só foram estabelecidas em outubro de 2013, com a Lei Estadual nº 12.910.

Em 2015, a Associação do Capão do Modesto obteve a certificação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais (Sepromi), órgão estadual. Este é o primeiro passo para a regularização fundiária, visando o Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), que garante a posse por 90 anos, “prorrogável por iguais e sucessivos períodos”. No entanto, após uma década da legislação, nenhum dos 51 fechos de pasto certificados no oeste da Bahia foi regularizado pela Sepromi.

Em 13 de dezembro de 2022, o Estado da Bahia ajuizou a ação discriminatória do Capão do Modesto para, além de reivindicar as terras que considera públicas, “por fim ao grave conflito fundiário existente na área”. Os réus são 17 fazendeiros e empresas que produzem grãos e algodão.

Em 3 de maio de 2023, o juiz Matheus Santos, da Comarca de Correntina, acatou o pedido da Procuradoria-Geral da Bahia e determinou o bloqueio das 19 matrículas sobrepostas à gleba do Capão do Modesto. Na solicitação ao juiz, o procurador do Estado, José Paulo Batista, classificou como “um dos casos mais graves de grilagem registrados na Bahia”.

Desde que assumiu a presidência da Associação Comunitária de Preservação Ambiental dos Pequenos Criadores do Fecho de Capão do Modesto, em 2014, Antônio Silva conta viver sob ameaças, agressões físicas e psicológicas, além da frequente destruição de estruturas do fecho. Hoje faz parte do programa de defensores ambientais da ONG Global Witness, e sua casa é cercada por telas de arame e vigiada por câmeras de segurança. Foto: André Dib / Ambiental Media.

“É forte a evidência de que a Gleba Capão do Modesto possui áreas que nunca chegaram a ser destacadas do patrimônio público, o que não se pode admitir”, concluiu Batista.

A abertura dessa ação discriminatória suspendeu uma ação possessória iniciada em novembro de 2017, em que sete fazendeiros pedem a reintegração de posse contra a Associação do Capão do Modesto e mais nove pessoas – isto é, demandam que os fecheiros saiam do local. Entre os autores estão a Agropecuária Sementes Talismã e Luiz Carlos Bergamaschi, dono da Fazenda Xanxerê e ex-presidente da Associação Baiana de Produtores de Algodão (Abapa).

Nesta ação possessória, o juiz Matheus Santos tinha derrubado uma liminar favorável aos fazendeiros por considerar que eles não exerciam a posse anterior da área que alegam ter sido invadida e que os fecheiros se instalaram na região “há cerca de 200 anos, sendo o conflito fundiário iniciado nas décadas de 1980 e 1990”.

O magistrado ainda afirmou que “é frequente, em regiões de conflitos fundiários, a prática de fixação de reserva legal em áreas ocupadas por supostos invasores ou possessórios, como meio de impedir seu estabelecimento e manutenção na região, bem como suprimir e criminalizar a forma de subsistência de terceiros”.

A desembargadora Telma Silva Britto, da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), porém, suspendeu os efeitos da decisão de Santos ao dar provimento a um recurso dos fazendeiros, em que eles alegam a inexistência de provas de ameaças, mortes de animais de criação e impedimento de acesso à água, e que o juiz desconsiderou os registros dos imóveis apresentados.

Homem de meia-idade com boné branco e camiseta clara, visto em perfil ao entardecer. Ao fundo, a vegetação está desfocada, com luz suave do pôr do sol. Ele parece observador e reflexivo.

Marcos Rogério Beltrão é morador de Correntina e criador do Movimento Ambientalista Grande Sertão Veredas, focado na defesa dos povos e do meio ambiente do Cerrado. Foto: André Dib / Ambiental Media.

Os fecheiros esperam que o desfecho da ação discriminatória seja favorável ao Estado da Bahia, o que na prática anularia a ação possessória e abriria caminho para a destinação da terra à comunidade. A Ambiental procurou o TJ-BA para entender o andamento do processo, mas o tribunal disse que os pronunciamentos ocorrem apenas nos autos. 

“Ainda existem algumas questões jurídicas que podemos tentar. Mas, atualmente, no Judiciário, essa posse está para os fazendeiros”, diz Aryelle Almeida, advogada da Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), que representa os fecheiros. “Na discriminatória, a gente pode reverter isso.”

Para Antônio Silva, presidente da Associação do Capão do Modesto, está em jogo muito mais do que a posse da terra. “A gente defende a água, defende o Cerrado, e está tentando preservar o resto que tem.”

Com base em dados da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), a Bacia do Rio São Francisco é a mais impactada entre as seis analisadas no projeto Cerrado – O Elo Sagrado das Águas do Brasil, lançado pela Ambiental. Em 37 anos, a área ocupada pela soja cresceu 71 vezes, pressionando rios e o lençol freático. A vazão mínima de segurança da bacia caiu pela metade desde a década de 1970.

A promotora Luciana Khoury considera urgente a regularização dos territórios. “A não implementação dessas garantias tem repercutido no agravamento dos conflitos, com severos prejuízos para a dignidade, a saúde, a vida e a integridade física dessas comunidades”, diz. Khoury coordena o Núcleo de Defesa da Bacia do São Francisco, do MP-BA, e atua no oeste da Bahia desde 2001. Para ela, “não tem outro caminho para proteger o ambiente hoje que não seja manter as comunidades nos seus territórios”. 

Em 2024, Khoury representou o MP-BA no encontro do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), em Brasília. O grupo que está criando o Núcleo Agrário de Povos e Comunidades Tradicionais, do qual a promotora faz parte, apontou que as situações mais emergenciais no oeste da Bahia são as dos fechos Capão do Modesto e do Cupim.

Fecheiros do fecho do Cupim reconstroem o rancho utilizado para repouso, que eles denunciam ter sido destruído por fazendeiros no município de Correntina, oeste da Bahia. Foto: André Dib / Ambiental Media.

Resistência fecheira

Ao chegarmos na porteira do fecho do Cupim, na zona rural de Correntina, os fecheiros descem de duas caminhonetes. Com uma enxada, conferem se há algum tipo de armadilha na estrada de areia, como pregos, mas avistam apenas rastros de pneus. Suspeitam que sejam de seguranças particulares contratados por fazendeiros, contra quem travam batalhas judiciais pela posse da área.

Depois, os fecheiros seguem até o local onde vão reconstruir o rancho, uma estrutura de repouso para a época da lida no fecho, mas que frequentemente é destruída. Precisam pegar uma estrada alternativa, que passa na divisa com o fecho vizinho, Capão do Modesto, porque a ponte de madeira que dá acesso mais rápido fora novamente danificada.

Os sinais do conflito se estendem ao longo dos 40 minutos até o local. Da cerca de aproximadamente 10 quilômetros restam apenas estacas de madeira – os arames são constantemente retirados desde setembro de 2022. Logo depois do primeiro episódio, os fecheiros denunciaram um incêndio na vereda do córrego do Cupim, que acreditam ter sido criminoso. “Botaram fogo para incriminar a gente”, diz Márcio Sodré, 40 anos, membro da Associação do Fecho do Cupim, Sumidor e Cabresto (ACPAC). 

Para reconstruir o rancho, 24 fecheiros trabalham em esquema de mutirão, sob a escolta de policiais militares. Alguns removem da terra as estacas danificadas, enquanto outros cortam madeira para utilizar como pilares.

Grupo de policiais armados com coletes à prova de balas confronta homens vestidos com roupas civis em uma área rural. A cena mostra tensão entre os dois grupos, que estão em um espaço aberto de vegetação rasteira e árvores ao fundo.

Enquanto a reportagem acompanhava os fecheiros que reconstruíam um barraco, cinco seguranças armados da Extrema, empresa contratada pela Fazenda Bandeirantes, se aproximaram. Houve discussão e os seguranças foram embora depois de cerca de 10 minutos, após pedido dos policiais militares que escoltavam os fecheiros. “Tem que respeitar. O senhor fala pro seu patrão esquecer essa área. Tem mais de 100 anos que nós labutamos aqui”, disse um dos fecheiros durante a discussão. Foto: André Dib / Ambiental Media.

À Ambiental, a Polícia Civil da Bahia informou que já concluiu inquéritos sobre os casos denunciados pelos fecheiros e os encaminhou para o TJ-BA com os devidos indiciamentos. Questionada, a Polícia Civil não esclareceu quem são os indiciados e por quais crimes.

Sodré vive na comunidade do Cerco, próximo da sede urbana de Correntina, e desde os 10 anos frequenta o fecho do Cupim, área utilizada para a solta do gado há mais de um século. Nas comunidades, as famílias vivem em propriedades individuais na beira dos rios, onde cultivam pequenas roças e, na época seca, mantêm o gado nas pastagens. Em três décadas, o fecheiro testemunhou a mudança de uma vida pacata para um cotidiano sob constante ameaça. “Estamos nessa luta porque a gente necessita disso aqui. Ano passado [2023] mesmo foi fraco de chuva. O pessoal já está ficando sem o pasto [nas áreas individuais], e a salvação nossa é o gerais”, diz. 

Os fecheiros afirmam que as terras têm sido disputadas pela Fazenda Bandeirantes. Segundo investigação da AATR, utilizada como base em ações discriminatórias do Estado da Bahia, a área “teria sido adquirida dos herdeiros de Tertulino e Umbelina Moreira pelo banqueiro de origem sírio-libanesa Edgar Khafif, em 1979, tendo sido registrada ilegalmente um ano depois, no CRI [Cartório de Registro de Imóveis] de Correntina”. Em 1980, o banqueiro fundou a Bandeirantes Reflorestadora LTDA e a fazenda foi incorporada como bem de capital da empresa, que obteve financiamento do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) para o plantio de pinus e eucalipto. Mas o projeto foi abandonado, de acordo com o relatório.

Close-up de um homem mais velho usando camiseta verde e chapéu camuflado, puxando a gola da camisa com uma das mãos e apontando com o dedo para a região da clavícula, sob a luz do sol. A pele mostra sinais de envelhecimento e exposição ao sol.

Em 2023, depois de um mutirão para reconstruir o rancho e a ponte, 34 fecheiros foram até o córrego do Cupim para beber água, quando três pistoleiros de tocaia dispararam. Vivaldo mostra a marca da bala que continua alojada em seu ombro. Foto: André Dib / Ambiental Media.

A investigação da AATR aponta que a propriedade foi adquirida em 2014 pela Light of Stars Gestão Patrimonial. Em 2016, a empresa tentou registrar o imóvel no Cartório de Correntina, mas o oficial de registro indeferiu a escritura. No recurso da empresa, a juíza Marlise Alvarenga, então na Comarca de Correntina, manteve a decisão do oficial e encaminhou os autos à Procuradoria-Geral da Bahia “ante os indícios de domínio irregular de terras públicas estaduais”. Porém, três anos depois, a empresa cadastrou as sete matrículas no Incra e obteve a certificação em cartório das parcelas, que somam 21.697 hectares sobrepostos aos fechos do Cupim e Vereda da Felicidade, ambos já reconhecidos pelo órgão estadual de terras. A Light of Stars é ré na ação discriminatória, iniciada em março de 2023, da gleba Vereda da Felicidade, ocupada tradicionalmente pelo fecho de mesmo nome.

Os fecheiros do Cupim relatam que em 2021 receberam ofertas de compra da área por uma pessoa que se identificou como gerente da Fazenda Bandeirantes, mas os fecheiros rejeitaram as investidas. “Quando recusaram, os conflitos se acirraram. Começaram a entrar na área, cortar cerca, ponte, destruir rancho, a sede da associação. Houve tentativa de homicídio”, observa Eliene da Guarda, advogada da ACPAC. 

Em setembro de 2022, a casa de alvenaria e o rancho da associação foram destruídos. Nas denúncias na delegacia, os fecheiros relatam a suspeita de que as ocorrências aconteceram a mando de Jarbas Guimarães Júnior, dono da fazenda Santa Tereza III, situada na gleba Vereda da Felicidade.

Close-up de um abdômen masculino com pele morena e pelos brancos, onde se destaca uma cicatriz vertical proeminente. As mãos do homem puxam a roupa para revelar a marca, sugerindo uma cirurgia passada.

Gelson Galvão mostra a marca de bala no abdômen, fruto da emboscada no córrego do Cupim em 2023. “Meu intestino foi perfurado em cinco partes. A bala ficou alojada a um centímetro da coluna”, disse ele. Foto: André Dib / Ambiental Media.

Já no dia 11 de abril de 2023, depois de um mutirão para reconstruir o rancho e a ponte, 34 fecheiros foram até o córrego do Cupim para beber água, quando três pistoleiros de tocaia dispararam. Alecsandro Jesus levou um tiro no braço direito; Vivaldo dos Santos, no ombro direito; Gelson Galvão, no abdômen. Os três foram hospitalizados. Os dois últimos permanecem com os projéteis no corpo. “Meu intestino foi perfurado em cinco partes. A bala ficou alojada a um centímetro da coluna. O médico falou que não podia tirar, porque de repente eu poderia nem andar mais”, conta Galvão, de 59 anos, enquanto mostra a cicatriz.

Segundo a Polícia Civil da Bahia, as investigações são conduzidas pelo Grupo Especial de Mediação e Acompanhamento de Conflitos Agrários e Urbanos.

Em 11 de julho de 2023, a Polícia Civil prendeu sete suspeitos de integrar o grupo responsável por ataques à sede da ACPAC, durante o cumprimento de mandados de busca e apreensão em alojamentos das fazendas Bandeirantes e Santa Tereza. As prisões em flagrante aconteceram por porte e posse ilegal de armas de fogo e munições e associação criminosa.

O promotor Victor César Matias, da Vara Criminal de Correntina, pediu a conversão da prisão em flagrante em preventiva de três suspeitos presos por “fortes indícios de que estariam envolvidos em tentativas de homicídios qualificados, disparos de armas de fogo, efetuados desordenadamente contra aproximadamente 30 vítimas”. Horas depois, porém, o juiz Matheus Santos negou o pedido de prisão preventiva e concedeu a liberdade provisória ao trio, sob medidas cautelares.

Homem ajoelhado na beira de um riacho em meio à vegetação, usando chapéu e camisa verde, tocando a água com a mão enquanto um tronco caído atravessa o curso do rio.

Vivaldo bebe água em uma vereda no Fecho do Cupim. Foi neste local que ele e outros dois colegas foram baleados em uma emboscada em 2023. O atentado segue em investigação pela Polícia Civil da Bahia. Foto: André Dib / Ambiental Media.

Em 2011, a ACPAC entrou com uma ação contra Jarbas Guimarães Júnior e a empresa Bandeirantes Reflorestadora (que já não está mais em operação), para proibir que os seguranças privados entrem na área do fecho. Em dezembro de 2023, o juiz Matheus Santos argumentou que não poderia apreciar o pedido sem ter a delimitação da área para não atingir terceiros. “Aí nós contratamos um profissional, fizemos a medição, apresentamos e requeremos apreciação do pedido da liminar, mas nada ainda”, diz Guarda. Em abril de 2025, a ação seguia sem desdobramento, segundo a advogada. A reportagem tentou novo contato em dezembro de 2025 para atualizar o andamento da ação e não obteve resposta.

“Aqui é o refúgio nosso. Quando dá anos incertos de seca, se o gado ficar lá [no pasto das áreas individuais], morre de fome. A gente pega e solta aqui, aí ele se vira. Come fruta, ramagem, as coisas nativas por uns 60 dias, enquanto lá chove e os pastos se recuperam”, conta Elson Pereira da Silva, fecheiro de 62 anos.

Enquanto Pereira relatava as situações de violência, chegam à área do rancho cinco seguranças armados da Extrema, empresa contratada pela Fazenda Bandeirantes. Os fecheiros os rodeiam e questionam a presença deles. Um dos seguranças se aproxima do centro da roda.

“Tem que respeitar. O senhor fala pro seu patrão esquecer essa área. Tem mais de 100 anos que nós labutamos aqui”, diz um fecheiro.

“A gente só veio fazer o trabalho da gente”, responde o segurança.

“Quebrar a casa e a cerca? A gente tá com gado nas costas porque não consegue trazer aqui. Faz um acordo com seu patrão lá para não fazer isso, não. Tenha dó dos criadores de gado”, pede o fecheiro. “Pode falar lá: os meninos não vão abrir mão do gerais, não”, outro colega acrescenta.

“Vocês estão dizendo que foi a gente. Pode ter certeza de que a gente não foi. A gente está tentando conversar, educado. A gente está escutando vocês. Vocês que chamaram a gente de ladrão”, retruca o segurança.

Após 10 minutos de discussão, os policiais militares que acompanhavam os fecheiros pedem para os seguranças irem embora. Os fecheiros retomam os trabalhos e finalizam o rancho – que três semanas depois já havia sido derrubado.

O sol se põe na comunidade do Mocambo, banhada pelo rio Corrente e situada no município de Santa Maria da Vitória, no oeste da Bahia.  Foto: André Dib / Ambiental Media.

A Ambiental conseguiu, em setembro de 2024, contato com a Light of Stars, proprietária da Fazenda Bandeirantes, por telefone e encaminhou um e-mail com as questões sobre o conflito fundiário, que não foram respondidas até a publicação desta reportagem. A Ambiental também conseguiu contato com a Aguisa, empresa de Jarbas Guimarães Júnior – proprietário da Fazenda Santa Tereza III, e enviou as perguntas para o e-mail da diretoria, mas também não obteve retorno. Em relação à Extrema, a Ambiental não foi atendida nos contatos por celular e e-mail.

Direito à terra, preservação das águas

Em 13 de março de 2024, a  Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais certificou o fecho do Cupim como comunidade tradicional

A defesa dos fecheiros tenta estender a área em discriminação da ação da gleba da Vereda da Felicidade, que está na esfera judicial, para o fecho do Cupim. “A fazenda que lhe sobrepõe já possui pedido de anulação de matrícula na ação discriminatória existente, o que tornaria desnecessário o ingresso de outra ação. Mas isso ainda será avaliado pelo juiz”, diz o advogado Maurício Correia.

A importância do fecho não se restringe à área coletiva. As águas que correm no gerais caem nos rios principais, como o Correntina, que mais abaixo abastecem as comunidades. Mas, ao longo do vale, os fecheiros do Cupim já reparam nos processos de migração de nascentes e secamento de rios e córregos. Os fenômenos têm relação com o uso intensivo da água na agricultura irrigada e o desmatamento do cerrado do chapadão, além da crise climática. 

“O gerais tem uma terra arenosa. A água bate e corre para o aquífero e se acumula para sustentar os rios, os córregos”, explica o fecheiro Márcio Sodré. “A gente luta muito por causa dessa situação. Se não, os rios acabam. Se o agro continuar fazendo como está, eles acabam com tudo.”

Legenda da foto de abertura: Enquanto a reportagem acompanhava os fecheiros que reconstruíam um barraco, cinco seguranças armados da Extrema, empresa contratada pela Fazenda Bandeirantes, se aproximaram. Houve discussão e os seguranças foram embora depois de cerca de 10 minutos, após pedido dos policiais militares que escoltavam os fecheiros. “Tem que respeitar. O senhor fala pro seu patrão esquecer essa área. Tem mais de 100 anos que nós labutamos aqui”, disse um dos fecheiros durante a discussão.

Colaboraram nesta edição:
Fernanda Lourenço, Miguel Vilela, Thiago Medaglia.

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