Grande parte do Brasil vai passar mais um verão sem sistema eficiente de alerta de desastres

Felipe Migliani

Felipe Migliani

Repórter, atua com jornalismo investigativo orientado por dados e sob a perspectiva das periferias e do meio ambiente no Rio de Janeiro

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Esta reportagem foi produzida com apoio do Pulitzer Center.

A Anatel iniciou a implementação de uma nova ferramenta, mas apenas em 11 municípios. Informações exclusivas obtidas pela Ambiental por meio da Lei de Acesso à Informação apontam que, no Rio de Janeiro, há menos sirenes em operação hoje do que em 2011, quando o sistema foi instalado.

Depois da seca extrema que assolou boa parte do Brasil, o verão se aproxima e, com ele, as chuvas. A estação costuma trazer muitas preocupações para moradores de áreas de risco. Um cenário desafiador como o de mudanças climáticas exige uma série de medidas. Entre as mais urgentes está a implementação de sistemas que alertem a população sobre os perigos de forma efetiva e com antecipação suficiente.

Após o desastre no Rio Grande do Sul neste ano, que deixou 183 mortos, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) iniciou a implementação de uma nova ferramenta. Diferentemente dos mais comuns, que enviam mensagens por SMS, o novo sistema, batizado como “Defesa Civil Alerta”, emite um aviso que aparece sobreposto a qualquer conteúdo do celular e exige uma ação do usuário para fechar a janela.

A tecnologia, chamada cellbroadcast, pode disparar sirenes em casos graves e envia os avisos automaticamente para todos os usuários que estiverem nas áreas de risco determinadas, sem necessidade de cadastro. Por ora, o sistema está em fase inicial de implementação em 11 municípios brasileiros, escolhidos entre os que tiveram mais alertas em 2023 e histórico recente de desastres com grande impacto.

Enquanto a ferramenta não chega a todas as cidades, parte da população ainda depende de tecnologias mais antigas, como as sirenes de alerta de risco de deslizamento. É o caso do município do Rio de Janeiro, onde o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) estima haver 475 mil pessoas vivendo em áreas sob risco de enchentes ou deslizamentos.

“As sirenes funcionam como importante ferramenta para minimizar o impacto de chuvas fortes em comunidades com alto risco de deslizamentos”, diz Tharcisio Cotta Fontainha, professor adjunto de Engenharia de Produção na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e líder do Centro de Estudos e Pesquisas de Engenharia em Desastres. “Por outro lado, ter sirenes por si só não é suficiente, […] é importante avançar com outros mecanismos para aumentar a aderência da população. Nesse sentido, a iniciativa [da Anatel] com certeza ajuda também, mas não é suficiente se não houver um trabalho de conscientização da população.”

Ilustração realista mostra uma favela vista do alto, com ícones representando alertas de chuvas em diferentes meios de comunicação (televisão, rádio, celular).

Além das sirenes, outros sistemas de alerta precoce, enviados por meios digitais ou de radiodifusão são necessários para reduzir riscos de desastres. Ilustração: Luiz Iria / Ambiental Media

Sirenes esquecidas

No Rio, as sirenes foram alardeadas como medida essencial de proteção em 2011, quando foi lançado o programa Sirenes Cariocas. Desde então, porém, o programa está esquecido. Informações exclusivas obtidas pela Ambiental, por meio da Lei de Acesso à Informação, apontam que há 164 sirenes de alerta de deslizamento em funcionamento no município, a maioria nas zonas Sul e Norte, e que a última instalação ocorreu em 2012. O número total é menor do que em 2011, quando a prefeitura instalou 168.

Em relatório de 2022, o Tribunal de Contas do Município (TCM), responsável por auditar a atuação dos órgãos da prefeitura, identifica cerca de 400 comunidades que ainda não possuem sirenes ou estudos de risco geológico-geotécnico, a maioria em torno do maciço da Pedra Branca, na Zona Oeste. Segundo o TCM, o sistema de alerta sonoro abrange apenas um terço das possíveis áreas de risco da cidade. A localização das sirenes tem como base um mapeamento de 2010, que precisa ser atualizado. No relatório, o tribunal determina que o município, por meio da Fundação Geo-Rio – órgão responsável pela gestão do risco geológico-geotécnico, licenciamento de obras particulares e exploração mineral – finalize o mapeamento de risco geológico-geotécnico da cidade em um ano e amplie o sistema de alerta sonoro nas comunidades.

O levantamento do TCM ainda aponta que em 77 locais com elevado grau de risco, identificados pela Geo-Rio, não foi executada nenhuma ação de solução e nem havia planejamento para a execução de obras. O relatório estima que R$ 83 milhões deixaram de ser gastos com programas de contenção entre 2018 e 2021, afetando quase 100 mil pessoas.

Em resposta ao TCM em maio de 2022, a Geo-Rio informa que o mapeamento de áreas de risco estava sendo desenvolvido e seria apresentado aos órgãos competentes assim que concluído. A prefeitura deu exatamente a mesma resposta quando consultada por esta reportagem, em setembro de 2024: “Estudos estão sendo realizados a fim de promover a atualização do mapeamento de risco geológico na cidade do Rio de Janeiro”. A administração municipal ainda complementou que, com a conclusão desses estudos, será possível avaliar se há necessidade de remoção de alarmes ou de instalação em novas áreas.

A assessoria de imprensa do TCM disse à Ambiental que o tribunal vai reavaliar o caso no ano que vem. A fim de entender quando os estudos seriam finalizados, a reportagem tentou contato com a assessoria de comunicação da prefeitura, mas não obteve retorno. No entanto, depois de uma nova solicitação via Lei de Acesso à Informação, a Fundação Geo-Rio informou que os “elementos técnicos” da licitação para a atualização do mapeamento de risco geológico-geotécnico estão prontos, mas que aguarda “disponibilidade orçamentária” para contratar o serviço.

No mapa dos lares em risco na metrópole do Rio de Janeiro, elaborado pela Casa Fluminense com dados do Censo de 2022 e do Serviço Geológico Brasileiro, há pelo menos 200 domicílios em áreas sob alto risco de deslizamento em diferentes bairros da Zona Oeste em torno do maciço da Pedra Branca. Entre eles, o Recreio dos Bandeirantes, Camorim, Curicica, Região das Vargens, Jacarepaguá, Tanque e Guaratiba, que seguem sem sirenes de alerta.

Desde o lançamento do programa Sirenes Cariocas, os bairros da Zona Oeste lideraram o aumento populacional do município, segundo o último Censo (2010-2022). Os cinco distritos que mais cresceram em população foram justamente Guaratiba (44%), Barra da Tijuca (40%), Jacarepaguá (14%), Santa Cruz (12%) e Campo Grande (11%).

Além disso, as mudanças climáticas pintam um quadro de chuvas cada vez mais extremas. Em entrevista à Ambiental, Fernanda Cerqueira Vasconcellos, professora de meteorologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, conta que já há estudos que mostram chuvas mais fortes no estado. “O impacto das mudanças climáticas nas chuvas pode ser até maior na sua distribuição do que no seu total anual”, diz. “Em diversas regiões do estado, há um aumento observado de eventos intensos de chuvas, principalmente na região litorânea.”

Sirenes de alerta para risco de deslizamento, rotas de fuga sinalizadas e pontos de apoio para chuvas são essenciais para evitar desastres decorrentes de chuvas fortes. Ilustração: Luiz Iria / Ambiental Media

Como funcionam as sirenes?

O Sistema de Alerta e Alarme Comunitário para Chuvas Fortes da Prefeitura do Rio monitora 103 comunidades de alto risco geológico. E as sirenes soam sempre que são atingidos índices pluviométricos que tornam necessária a desocupação preventiva.

São três sons distintos para evacuação em caso de chuvas intensas. O primeiro sinal é preventivo, alertando sobre a possibilidade de chuvas fortes. O segundo, já durante as chuvas, mobiliza moradores para lugares seguros devido aos riscos de deslizamentos. O terceiro sinal informa a desmobilização, quando o perigo é descartado.

“A sirene é de suma importância”, avalia Adilson Batista Almeida, um dos líderes do quilombo do Camorim, localizado na região de Jacarepaguá. “A comunidade do Alto Camorim possui casas em áreas de encosta e, embora não tenham ocorrido deslizamentos até agora, é crucial ter um curso de risco de desastre e instalar sirenes para preparar a população para emergências, especialmente devido às mudanças climáticas e à destruição da natureza.”

De acordo com Almeida, a comunidade está localizada na zona de amortecimento [área ao redor de uma unidade de conservação] do Parque Estadual da Pedra Branca”, afirma, em referência às áreas no entorno das unidades de conservação onde as atividades humanas são mais restritas. “Houve um deslizamento em outra parte da montanha, onde não há casas, apenas mata e cachoeira. Portanto, é necessário instalar sirenes para alertar a comunidade e garantir a segurança.”

O programa Sirenes Cariocas foi lançado logo após as chuvas de 2010, que deixaram mais de 230 mortos no estado e pelo menos 35 no município. Além das sirenes, o programa também sinalizou rotas de fuga e pontos de apoio para a população se deslocar em caso de acionamento. Na época do lançamento, o Núcleo de Proteção e Defesa Civil (Nupdec) do município realizou simulados de evacuação que contemplaram todas as comunidades mapeadas. Desde então, a prefeitura afirma que o Nupdec realiza novos simulados de desocupação anualmente.

Documento referendado pelos 187 Estados Membros da ONU, o Marco de Sendai para a Redução do Risco de Desastre recomenda a promoção de estratégias para reforçar a educação e a conscientização públicas, “incluindo informações e conhecimentos sobre o risco de desastres, por meio de campanhas, mídias sociais e mobilização comunitária”. Mas há outras medidas igualmente importantes, como a construção e manutenção de infraestruturas resilientes.

“É importante tomar cuidado também para não considerar que instalação de sirene e oferta de simulado já constitui a parte de responsabilidade do governo, pois isso pode ser visto como uma forma de ‘transferir’ a responsabilidade pelas vítimas de desastres para a própria população”, diz Tharcisio Cotta Fontainha. “Há muitas outras ações que o governo deve conduzir para mitigação de riscos […] além de sirenes e simulados.”

lustração realista mostra um bairro ou favela ao lado de um rio de margens muito arborizadas, alguns edifícios com telhados verdes, calçadas com pavimento permeável – tudo embaixo de chuva.

Para se prepararem para chuvas cada vez mais intensas, as cidades precisam ser sensíveis à água. O conceito de cidade-esponja sugere a arborização das margens de rios, construção de parques alagáveis, pavimento permeável, jardins de chuva e telhados verdes. Ilustração: Luiz Iria / Ambiental Media

Iniciativa da comunidade

Mesmo na Zona Norte, há locais em áreas de risco de deslizamento onde não há sistemas de alerta precoce. O Complexo do 18, localizado no Maciço da Tijuca, na Área de Proteção Ambiental Pretos Forros, é composto por cinco favelas: Morro do 18, Morro do Gambá, Morro do Encontro, Lemos de Brito e Saçu. Segundo mapa da Casa Fluminense, 81 domicílios no Complexo estão em área de risco, com 42 na Favela Lemos de Brito.

“No verão deste ano, a comunidade enfrentou dois grandes deslizamentos que causaram sérios problemas”, lembra o morador Lucas Prates, diretor do Projeto Social Família 18 e integrante do Coletivo Pretos Forros. Em um deles, houve impacto no abastecimento de água. “A falta de água potável agravou a situação, dificultando ainda mais a vida dos moradores que já estavam lidando com os efeitos dos deslizamentos.”

Ele conta que três famílias já precisaram ser removidas de suas casas e perderam boa parte das mobílias. Além disso, ressalta que frequentemente há quedas de árvores, com moradores precisando buscar refúgio em casas de parentes em dias com chuvas intensas, raios e ventanias.

Além de não haver sirenes, Prates conta que nunca foram realizados treinamento e simulação para a prevenção de acidentes.

“Já procuramos a Defesa Civil diversas vezes para solicitar a instalação de sirenes e a implementação de um plano de ação para fortes chuvas. Nas ocasiões em que a Defesa Civil esteve presente na comunidade, atendendo a chamados dos moradores, reiteramos a necessidade dessa estrutura de apoio e alerta”, diz Prates. “No entanto, até o momento, nossas solicitações não foram atendidas. A ausência de um sistema de alerta eficaz deixa a comunidade vulnerável, especialmente durante períodos de chuvas intensas, aumentando a preocupação e o risco para todos os residentes.”

Em resposta à reportagem, a prefeitura afirmou que não há pedidos de instalação de novas sirenes e listou as comunidades onde já foram realizados treinamentos sobre como agir em caso de desastres naturais durante a atual gestão (2021-2024). As favelas do Complexo do 18 não receberam treinamentos.

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Enquanto as medidas do poder público não chegam, a população local se mobiliza e cria soluções para reduzir os impactos dos deslizamentos de terra. Lucas Prates cita quatro projetos: “O Mutirão de Reflorestamento é um serviço que trabalha no reflorestamento dos Morros da Serra dos Pretos Forros. Além disso, há iniciativas de turismo de base comunitária, como o Trilhando no 18 e o Coletivo Pretos Forros, que atuam como agentes de intervenção, criando áreas verdes na comunidade e conscientizando os moradores sobre os riscos e formas de convivência harmônica com o meio ambiente”, diz. “E, claro, o Projeto Social Família 18, que foca na conscientização ambiental e na convivência.”

Para além das iniciativas da sociedade civil, moradores podem se informar pelo aplicativo Alerta Rio, desenvolvido pela Prefeitura, que oferece avisos em tempo real sobre condições meteorológicas durante os períodos de chuvas intensas. É possível acompanhar a previsão do tempo, dados sobre chuva, umidade e temperatura, além de boletins de alerta para possíveis inundações e deslizamentos, com informações georreferenciadas para exibir dados específicos de diferentes regiões. O sistema também envia alertas por SMS, mas é preciso fazer um cadastro, enviando o CEP de interesse ao 40199.

Outra forma de se manter informado é pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), unidade de pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Sua principal função é monitorar e prever desastres naturais, como enchentes, deslizamentos de terra e secas, em áreas de risco em todo o território nacional. Os alertas são repassados ao Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad) e auxiliam o Sistema Nacional de Defesa Civil. No site do Cemaden são publicados boletins diários com as previsões de riscos geo-hidrológicos.

Como essa reportagem foi produzida:
*Esta reportagem faz parte do projeto Rio 60ºC – Como a cidade se prepara para eventos climáticos extremos? –, realizado com apoio do Pulitzer Center e do Instituto Serrapilheira em parceria com o grupo de pesquisa RioNowCast+Green. O projeto trará um índice que revela as comunidades cariocas mais vulneráveis a inundações ou deslizamentos, além de reportagens produzidas em campo por jornalistas comunitários. Outra reportagem, em formato web stories e com ilustrações exclusivas, vai detalhar algumas das medidas mais urgentes para evitar desastres decorrentes de chuva forte. Todo o conteúdo será publicado ao longo das próximas semanas no site da Ambiental Media.

Colaboraram nesta edição:
Fernanda Lourenço e Miguel Vilela

Foto de capa: Sirene de alerta para risco de deslizamento na Comunidade da Chacrinha, no Complexo do Turano, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Foto: Renato Oliveira. Foto: Renato Oliveira

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