Temperaturas acima da média em grande parte do Brasil: meteorologista explica o que esperar do próximo verão

Felipe Migliani

Felipe Migliani

Repórter, atua com jornalismo investigativo orientado por dados e sob a perspectiva das periferias e do meio ambiente no Rio de Janeiro

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Esta entrevista foi produzida com apoio do Pulitzer Center.

Em entrevista à Ambiental, Fernanda Vasconcellos, professora e pesquisadora do Departamento de Meteorologia da UFRJ, conta como deve ser o próximo verão no Brasil e detalha os impactos das mudanças climáticas, principalmente no Rio de Janeiro. ​

O ano de 2024 foi marcado por eventos climáticos extremos no Brasil e em várias partes do mundo, como o desastre provocado pelas chuvas no Rio Grande do Sul, que deixou mais de 180 mortos, a seca na Amazônia e os incêndios em grande parte do território brasileiro. Nos dez primeiros meses deste ano, o país queimou um Tocantins inteiro. Foram 27,6 milhões de hectares, uma área 119% maior do que o total queimado no mesmo período do ano passado, segundo o MapBiomas.

Fernanda Vasconcellos, professora e pesquisadora do Departamento de Meteorologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), compartilha nesta entrevista um panorama sobre o que a ciência tem indicado em relação aos impactos das alterações do clima em diferentes regiões do Brasil, com foco no Rio de Janeiro.

No projeto Rio 60º, a Ambiental tem se debruçado em dados para entender quais regiões do município demandam mais atenção. O objetivo é criar um índice de vulnerabilidade a chuvas extremas e entender quais medidas podem evitar desastres e salvar vidas.

Felipe Migliani, Ambienta Media: O que se prevê para o próximo verão no Brasil, já que é nesta época que são mais frequentes questões envolvendo deslizamentos e enchentes?

Fernanda Vasconcellos: A nota técnica conjunta entre CPTEC/Inpe [Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos/Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], Inmet [Instituto Nacional de Meteorologia] e Funceme [Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos], lançada em novembro, indica maior probabilidade de chuva abaixo da faixa normal [menos chuva] em grande parte do Nordeste brasileiro, do Rio Grande do Sul e no oeste de Santa Catarina. Já Roraima, norte do Amazonas, Acre, sul de Goiás, nordeste de Mato Grosso do Sul, Triângulo Mineiro e setor sul de Minas Gerais, Rio de Janeiro e sul do Espírito Santo – a previsão indica maior probabilidade de chuva acima da faixa normal [mais chuva].

Vale ressaltar que nessa época do ano, são comuns os episódios de ZCAS (Zona de Convergência do Atlântico Sul) que promovem na região central do Brasil (incluindo as região Centro-Oeste e Sudeste) chuvas abundantes e de intensidade e persistência variadas, assim como episódios de pancadas de chuva localmente fortes, por vezes intensas e em curto período, acompanhadas de descargas elétricas, vendavais e eventual granizo, que poderão trazer impactos localmente significativos.

Quanto à previsão climática de temperatura, os modelos climáticos indicam maior probabilidade de ocorrência de temperaturas acima da faixa normal em grande parte do país, incluindo as regiões Norte, Nordeste, o Centro-Oeste, oeste da região Sul do país, além dos estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e norte do Mato Grosso do Sul

Imagem alaranjada com ribeirinho observando, em um barco, incêndio ao fundo na região de Corumbá, no Mato Grosso do Sul
Ribeirinho observa incêndio nos arredores de Corumbá (MS), no Pantanal. Ano foi marcado por queimadas em áreas extensas de diversos biomas. Nos dez primeiros meses deste ano, o Brasil queimou um Tocantins inteiro. Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Como a temperatura do Oceano interfere no continente sul-americano e em outras regiões?

Há uma grande conexão e interação entre os oceanos e a atmosfera, e essa interação tem impacto crucial no clima em todo o globo. O Atlântico é o oceano adjacente ao Brasil, mas influencia não só o continente sul-americano como também regiões remotas, através de padrões de teleconexões. Estamos observando um aumento da temperatura do Atlântico próximo ao sul do Brasil e Argentina nas últimas décadas e isso impacta diretamente na liberação de vapor d’água e calor latente na região, modifica a circulação atmosférica local e remota e também afeta sistemas meteorológicos, como a passagens de frentes frias. Publicamos um artigo recentemente mostrando essa tendência de aquecimento nas últimas décadas e que esse aquecimento impacta na ocorrência de mais chuvas no Sul e menos chuvas no Sudeste do Brasil, o que é algo que temos visto ocorrer com frequência nos últimos anos.

A Ambiental está desenvolvendo o projeto Rio 60ºC, sobre a necessidade de reduzir os impactos de eventos climáticos extremos no município do Rio de Janeiro. Em relação às mudanças climáticas, quais são os impactos previstos no Rio e em outras regiões do país?

Mais do que o aumento da temperatura média global, as mudanças climáticas possuem um impacto considerável em eventos extremos. Dados observados mostram que os acumulados de chuva estão reduzindo em várias partes do Nordeste e há um aumento da frequência e intensidade das chuvas sobre a região Sul. 

Para o estado do Rio de Janeiro, por exemplo, estudos publicados por pesquisadores aqui do departamento mostram que o impacto das mudanças climáticas nas chuvas pode ser até maior na sua distribuição do que no seu total anual. Em diversas regiões do estado, há um aumento observado de eventos intensos de chuvas, principalmente na região litorânea. Junto a isso, houve um aumento da quantidade de dias secos consecutivos, indicando que a chuva no estado está mais mal distribuída ao longo do ano. E isso é algo até mais impactante do que simplesmente aumentar a quantidade de chuva no ano, porque muitos dias secos contribuem para o secamento do solo e dos reservatórios, e chuvas fortes, além de causar diversos estragos, acabam não ajudando a repor os reservatórios de forma eficiente. 

Com relação à temperatura, mais do que o aumento da temperatura média, temos visto aumento das noites e dias quentes, diminuição das noites e dias frios, aumento de ocorrências de ondas de calor. As projeções futuras dadas por modelos climáticos mostram que essas tendências, que já estamos observando, tendem a intensificar.

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Você é a autora da tese A Oscilação Antártica – Mecanismos Físicos e a Relação com Características Atmosféricas sobre a América do Sul/Oceanos Adjacentes, defendida no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Como funciona esse padrão de oscilação?

A Oscilação Antártica – assim como o El Niño – é um tipo de padrão de teleconexão, ou seja, uma alteração local que afeta regiões distantes no globo. No caso da Oscilação Antártica, podemos pensar nela como uma gangorra de massa de ar entre as latitudes médias (aproximadamente 45ºS) e a região da Antártica. Na fase positiva, teríamos mais massa (maior pressão) que o normal nas latitudes médias, enquanto na região polar há menos massa (menos pressão) que o normal. Na fase negativa acontece o oposto. Como a natureza não gosta de desequilíbrio, essa gangorra vai gerar um transporte de massa da região de maior pressão para a de menor pressão, como uma forma de tentar voltar ao equilíbrio. Isso vai modificar a circulação atmosférica de todo Hemisfério Sul, afetando a ocorrência de vários sistemas meteorológicos, como os jatos em altos níveis da atmosfera, as frentes frias, Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS), etc. Como consequência, isso vai afetar o clima em todo o Hemisfério, inclusive no Brasil.

Transbordamento do Rio Guaíba, em Porto Alegre, com água invadindo cidade e usina do gasômetro em primeiro plano.
Usina do gasômetro, em Porto Alegre, após evento climático extremo que começou no fim de abril e se prolongou até o início de maio. De acordo com o governo do Rio Grande do Sul, 478 municípios foram afetados e 183 pessoas morreram. Mais de 20 seguem desaparecidos. Foto: Gilvan Rocha / Agência Brasil

Quais regiões da América do Sul são mais afetadas pela Oscilação Antártica? Os eventos climáticos que ocorreram entre abril e maio no Rio Grande do Sul possuem alguma relação com esse padrão?

Diversos estudos apontam que a Oscilação Antártica afeta o clima em diferentes partes da América do Sul. Em um artigo que publicamos em 2019, mostramos que a região sudeste da América do Sul (que engloba sul do Brasil, norte da Argentina, Paraguai e Uruguai) e parte das regiões Sudeste e Centro-Oeste do Brasil são as mais afetadas pela Oscilação Antártica. Entretanto, seu impacto difere mês a mês e nem sempre há uma influência oposta entre as fases da Oscilação Antártica.

Há também estudos indicando que a fase positiva da Oscilação Antártica favorece maior atuação da ZCAS, o que tem um impacto grande nas chuvas durante o verão. Entretanto, temos que levar em conta que outros padrões, como o El Niño, por exemplo, que também afetam a Oscilação Antártica. No final, o impacto no clima de uma região será uma combinação da influência de várias teleconexões diferentes e até de fatores locais. Um dos focos da minha pesquisa é exatamente tentar ver como as combinações de diferentes padrões de teleconexão podem afetar o clima na América do Sul.

Em relação ao desastre que ocorreu no Rio Grande do Sul (RS) no final de abril e início de maio, ele foi causado por uma combinação de muitos fatores. Estávamos na atuação de um El Niño, que favorece mais chuvas para o sul do Brasil, e no início de maio, a Oscilação Antártica estava na fase negativa, o que nesse mês também favorece as chuvas nessa região. Mas também tivemos um Atlântico mais aquecido próximo à costa sul e sudeste do Brasil, uma baixa pressão térmica sobre o norte da Argentina, um fluxo de umidade vindo da Amazônia direto para o RS, um bloqueio atmosférico que favorecia as frentes frias que ficam estacionadas sobre o RS, etc. Cada um desses fatores sozinhos ajuda a criar chuvas no RS, mas nesse evento estava tudo ocorrendo ao mesmo tempo, combinado.

Algo importante a ressaltar é que com as mudanças climáticas, eventos extremos tanto de chuva como de seca estão se tornando cada vez mais frequentes e severos em todo o globo. E tanto os dados observados nas últimas décadas quanto as projeções futuras dadas por modelos climáticos apontam para um aumento de eventos desse tipo no sul do Brasil.

Como podemos reverter este cenário? O que deveria ser feito em curto, médio e a longo prazo?

Algo importante a ser dito é que mudança não deve ser somente a nível local, ou de cidade. As mudanças climáticas são globais e as medidas devem ser feitas também por todos. Dito isso, uma mudança para uma economia sustentável, circular e verde, e a criação de uma cidade resiliente são essenciais. Contribuições para a diminuição de emissão de gases do efeito estufa, envolvendo desde diminuição da pegada de carbono, reflorestamento, incentivo a transporte público de massa e menos poluentes, diminuição da poluição provocada por transportes, indústria e agricultura (tanto do ar quanto da água), preparar a cidade para eventos intensos de calor e de chuvas, incentivos à energia renovável, etc.

Para isso precisa de muito planejamento, mas também de ações urgentes, desde já. Não para o futuro ou para as próximas gerações, mas para agora. O mundo precisa entender que a Terra simplesmente não sustenta mais a relação de produção e consumo que existe hoje. Ela está no seu limite e não temos opção a não ser mudarmos. E o Brasil tem um potencial tão grande para ser dominante nessa mudança. O último relatório do IPCC tem uma parte somente detalhando medidas que os tomadores de decisão devem seguir para mitigarmos as mudanças climáticas. Acho que é uma leitura obrigatória para todos os governantes (e claro, colocar em prática).

Colaboraram nesta edição:
Fernanda Lourenço e Miguel Vilela

Foto da capa: Estudos publicados indicam que, por causa da crise climática, as chuvas no Rio de Janeiro estão mal distribuídas, com mais dias secos consecutivos e, por outro lado, chuvas mais fortes. Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil

*Esta entrevista faz parte do projeto Rio 60ºC – Como a cidade se prepara para eventos climáticos extremos? –, realizado com apoio do Pulitzer Center e do Instituto Serrapilheira em parceria com o grupo de pesquisa RioNowcast+Green. O projeto trará um índice que revela as comunidades cariocas mais vulneráveis a inundações ou deslizamentos, além de reportagens produzidas em campo por jornalistas comunitários. Outra reportagem, em formato web stories e com ilustrações exclusivas, vai detalhar algumas das medidas mais urgentes para evitar desastres decorrentes de chuva forte. Todo o conteúdo será publicado ao longo das próximas semanas no site da Ambiental Media.

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