A saúde do rio Negro
Expedição científica inédita em barco-laboratório reuniu pesquisadores das universidades do Estado do Amazonas e de Harvard no ano da pior seca já registrada na região. A missão: investigar a contaminação por mercúrio e desenvolver o primeiro Índice de Qualidade das Águas para um rio amazônico, ferramenta crucial para nortear políticas públicas.
Reportagem: Kevin Damasio, de Santa Isabel do Rio Negro
Fotos: Bruno Kelly Mapas: Rodolfo Almeida
Em setembro de 2023, cientistas embarcaram em uma expedição pelo rio Negro para criar o primeiro Índice de Qualidade das Águas (IQA) para um rio amazônico e estudar o ciclo do mercúrio
Maior arquipélago fluvial do planeta, Mariuá é um labirinto de ilhas e águas bem conservadas – ideais para desenvolver um IQA
Apesar do alto nível de preservação florestal e hídrico, falta saneamento básico. Em Barcelos e Santa Isabel do Rio Negro, o esgoto corre direto para o rio
Os pesquisadores querem entender se no encontro dos rios Branco – alvo de garimpo – e Negro há mercúrio de origem natural ou de origem antrópica
Na vila de Moura, o rio Negro é a principal fonte de água para beber, cozinhar e tomar banho, além de permitir a chegada de mercadorias e serviços de saúde
Paraná do Cantagalo, um braço de rio preservado, obteve classificação “aceitável” – a menor dos 50 pontos analisados
O Parque Nacional de Anavilhanas tem ótimos índices de qualidade da água, o que favorece a economia de Novo Airão, baseada na pesca artesanal e ecoturismo
O rio Branco nasce da confluência dos rios Uraricoera e Tacutu, em Roraima, e percorre 560 quilômetros até desaguar na margem esquerda do rio Negro, no município de Rorainópolis. O encontro das águas brancas com as pretas é visualmente marcante, mas a importância do lugar não se limita às cores: pesquisadores da expedição científica da qual participo estão especialmente interessados na conservação das águas, diante do histórico de mineração de ouro nas cabeceiras distantes.
A beleza da Amazônia impressiona ali. Certa manhã, após uma coleta de água e sedimentos no leito pedregoso do rio Negro, atracamos na margem da Reserva Extrativista Baixo Rio Branco-Jauaperi. A entrada nessas florestas alagáveis, sem rastros de seres humanos, chama a atenção dos cientistas pela umidade intensa da mata e pela explosão de vida selvagem – sobretudo macacos e borboletas diversas. Depois, ao sairmos dali rumo à margem oposta do Negro, uma garoa passageira dá lugar ao sol forte, e botos-vermelhos caçam cardumes perto de uma mata de igapó, a alguns metros da nossa voadeira. Um enorme jacaré-açu desliza até uma pequena bancada de areia.
“É de tirar o fôlego. Cada ponto em que coletamos é uma paisagem diferente da anterior”, comenta Faiz Haque, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. O paquistanês de 25 anos, que cresceu na Inglaterra e é mestre em química analítica, está em sua primeira incursão de campo em águas amazônicas.
Estamos em setembro, perto do auge do verão extremo de 2023 na Amazônia, e duas equipes de cientistas, uma da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e outra de Harvard, partiram de Manaus em um barco de 60 pés (18 metros) equipado com quatro laboratórios. Ambos os grupos são pioneiros em seus objetos de estudo no rio Negro, bacia que abriga os maiores arquipélagos fluviais do mundo, populações ribeirinhas, unidades de conservação e terras indígenas. Apesar do ambiente pouco alterado pela ação humana ao longo da bacia, a pior seca registrada em 121 anos revela suas mazelas diariamente: a cota do Negro desce sem parar, dificultando a navegação, e a capital do Amazonas sufoca sob a fumaça de queimadas.
Na subida até Santa Isabel do Rio Negro, etapa inicial dos 12 dias da campanha, cientistas de Harvard buscam entender o ciclo do mercúrio no rio, coletando água, sedimentos do leito, solos da vegetação das margens e peixes consumidos pela população local. Na viagem de volta, pesquisadores da UEA coletam amostras para desenvolver o primeiro Índice de Qualidade das Águas (IQA) de um rio amazônico, ferramenta crucial para avaliar o estado de saúde dos corpos hídricos e nortear políticas públicas e estudos científicos. O rio Negro foi escolhido como ponto inicial do projeto por ser o segundo maior afluente do rio Amazonas – são 2.250 quilômetros de extensão do leito principal desde as cabeceiras na Colômbia – e pelo baixo nível de degradação.
“Um índice de qualidade de água tem de partir de locais sem nenhuma interferência humana. E, na Amazônia, o rio Negro nos dá essa condição”, diz Sérgio Duvoisin Júnior, coordenador geral da Central de Análises Químicas, do grupo de pesquisa Química Aplicada à Tecnologia (QAT), da UEA.
As amostras foram coletadas em intervalos de 14 quilômetros entre Manaus e Santa Isabel do Rio Negro ao longo de cerca de 700 quilômetros do rio Negro. Apesar da seca extrema, apenas dois dos 50 pontos de coleta receberam nota “aceitável” – todos os outros foram avaliados em “bom” ou “ótimo”.
Criado nos anos 1970, pela Fundação Nacional de Saneamento dos Estados Unidos, o Índice de Qualidade das Águas (IQA) engloba aspectos físico-químicos e microbiológicos para diagnosticar o estado de um corpo hídrico. O IQA foi adaptado pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) para os rios paulistas, em 1975. Nove parâmetros, cada um com seu peso, compõem um número na escala de 0 a 100, com cores de referência para ilustrar cinco classificações de péssima a ótima. Quanto mais próximo de zero, pior é a qualidade da água.
Trata-se de uma referência acessível para a população em geral: se o índice estiver na faixa vermelha, quer dizer que a água está ruim. No entanto, nunca foram criados índices específicos para os rios da Bacia Hidrográfica Amazônica, a maior do planeta. Para aferir a qualidade da água, os pesquisadores utilizavam o IQA de São Paulo ou do Rio Grande do Sul, cujas características da água são muito diferentes.
Um bom exemplo é o potencial hidrogeniônico (pH), que indica acidez ou alcalinidade da água. Se, de acordo com o IQA, nas regiões Sul e Sudeste o pH ideal da água é mais básico, na faixa de 6 a 9, o Negro é naturalmente mais ácido, de 4,5 a 5,5, por causa dos materiais orgânicos das florestas que escoam e são dissolvidos no rio. “Se vejo um pH de 4,5 em um local onde não tem ação antrópica no rio Negro”, observa Duvoisin, “o parâmetro de São Paulo vai dizer que a água está ruim. Mas não. A água está exatamente como deveria estar.”
Outra particularidade da Bacia Amazônica é a presença de três tipos de rios com características distintas – águas pretas, brancas e claras –, sendo necessário um índice diferente para cada um. Os pesquisadores da UEA ambicionam desenvolver IQAs para todos os principais rios amazonenses, além de realizar o monitoramento contínuo dessas águas conforme as sazonalidades, os períodos bem definidos de cheia e vazante ao longo do ano. A cota do rio Negro, por exemplo, pode oscilar de 13 metros a até quase 30 metros em um mesmo ano.
Os parâmetros com maior peso no índice – oxigênio dissolvido, coliformes termotolerantes, pH e condutividade elétrica – estão diretamente ligados à falta de tratamento de efluentes domésticos, por exemplo. E saneamento básico de baixa qualidade afeta a saúde pública, pois muitos vetores de doenças têm a água como meio. Assim, o trabalho dos pesquisadores irá ajudar os governantes na tomada de ações necessárias para recuperar um corpo hídrico que esteja degradado e melhorar as condições de vida das populações humanas.
O sensoriamento remoto eficiente na Amazônia já permitia identificar padrões de mudanças na superfície da água, “mas existem limites para que possamos entender no chão, no dado de campo, o que isso significa”, observa a geógrafa Ane Alencar, diretora de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
Agora, além de nortear políticas de abastecimento da população e de saneamento básico, o IQA pode contribuir para o planejamento de estudos de ecossistemas aquáticos, em escala ampla ou local. Sem essas informações, os pesquisadores têm ido a campo “no escuro” em termos de qualidade da água, considera a bióloga Cecília Gontijo Leal, pesquisadora da Universidade de Lancaster, na Inglaterra, e da Rede Amazônia Sustentável (RAS), especializada em ecossistemas de água doce na Amazônia. “Com a referência local, podemos identificar impactos momentâneos ou definitivos”, diz Leal, consultora científica do projeto Aquazônia, da Ambiental Media.
Bancos de areia expostos na região de Mariuá já indicavam a força da seca no rio Negro – semanas depois, o rio atingiria uma mínima histórica de 12,7 metros. Mariuá é o maior arquipélago fluvial do mundo, com 1.400 ilhas que se espalham ao longo de 270 quilômetros no Médio Rio Negro, entre as fozes dos rios Urubaxi e Branco.
Ciência em ano de seca extrema na Amazônia
Em 11 de setembro, quando o barco de pesquisa partiu da marina no igarapé Tarumã-Açu, em Manaus, com destino a São Gabriel da Cachoeira, os níveis da água no Negro baixavam assustadoramente, dia após dia, em um verão extremo alavancado pela combinação do aquecimento das águas do Pacífico, no fenômeno El Niño, e do Atlântico Norte, fenômenos potencializados pelas mudanças climáticas.
A bordo, dez cientistas – oito da UEA e dois de Harvard –, seis tripulantes e dois repórteres da Ambiental Media. Em uma viagem anterior, no início de 2023, os pesquisadores da UEA já haviam estabelecido os pontos de coleta ao longo da calha do Negro, de 14 em 14 quilômetros, assim como fizeram ajustes necessários em questões de segurança, tripulação e dinâmica das coletas.
Durante a campanha, o Negro secou em média 28,75 centímetros por dia. A queda seguiu até 26 de outubro, quando atingiu 12,7 metros, o nível mais baixo já registrado na série histórica iniciada em 1902. “É importante saber a qualidade da água do rio em época de cheia e de seca”, diz a bióloga Fernanda Vieira, 26 anos, mestranda em Meio Ambiente no grupo de pesquisa Química Aplicada à Tecnologia (QAT) e coordenadora de campo e laboratório da expedição. “Vamos agora poder entender o quanto o El Niño influencia nessa bacia.”
Com o barco-laboratório ao fundo, os pesquisadores Evan Routhier e Faiz Haque, da Universidade de Harvard, coletam amostras de água do rio Negro a bordo de uma voadeira, com apoio de Adriano Nobre e Clodoaldo Oliveira, da Universidade do Estado do Amazonas.
No Amazonas, o comércio e o trânsito de passageiros em quase todos os municípios do interior dependem de barcos que saem de Manaus. O Alto Rio Negro, contudo, é uma região de muitas pedras e corredeiras, perigosa para a navegação. Nas secas severas, embarcações ainda alcançam Santa Isabel do Rio Negro, mas além da cidade o percurso é feito sobretudo por lanchas rápidas. Por isso, alertou o prático do nosso barco, Josimar Pimenta Sanches, se o grupo quisesse subir até São Gabriel da Cachoeira, 250 quilômetros acima, poderia ter problemas no retorno. Os cientistas então tomaram a decisão de encerrar a subida em Santa Isabel.
“Minha casa é o rio”, me conta Sanches, de 37 anos, enquanto ziguezagueia o barco de pesquisa por Mariuá, o maior arquipélago fluvial do planeta, evitando as bancadas de areia em trechos rasos sinalizados pelo rebojo. Descendente de indígenas baré e migrantes maranhenses, ele nasceu em Santa Isabel do Rio Negro e começou cedo a acompanhar o pai em viagens para escoar a produção de borracha, sorva e piaçava. Quando o pai deixou o extrativismo e virou prático em tempo integral no rio Negro, Sanches seguiu o mesmo caminho.
Santa Isabel do Rio Negro tem 14 mil habitantes e, proporcionalmente, é o município com a maior população indígena do Amazonas (96%), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Serviços públicos e comércios ditam a economia do município rodeado por 62 mil quilômetros quadrados de floresta primária, 98% de sua área.
A precariedade do saneamento básico local se faz notar logo de cara. Pela manhã, pescadores chegam a todo instante na prainha do porto para vender tucunarés, aracus e pacus, entre outras espécies. O esgoto corre a céu aberto para o Negro, um símbolo da ausência de tratamento da água e de rede de esgotamento sanitário adequada, constatadas na Pesquisa Nacional de Saneamento Básico do IBGE de 2017.
O nível de tal poluição é alvo de três pesquisadores manauaras da UEA. José Clodoaldo Oliveira, de 54 anos, mestrando em recursos hídricos, pilota a voadeira na região de Mariuá de olho no aparelho GPS. No grupo de pesquisa desde 2008, o geógrafo está acostumado a navegar pelas bacias da Grande Manaus, como Tarumã-Mirim, Tarumã-Açu e Puraquequara – um cenário completamente diferente deste “labirinto de rios” com fundos traiçoeiros. Ele desacelera e desliga o motor de popa, a fim de evitar a contaminação das amostras pelo combustível.
Na proa, Gabriel Rodrigues coleta água em oito garrafas de polietileno, separadas em parâmetros como nitrogênio, fósforo, fosfato, cloretos e coliformes. Em algumas, adiciona ácido sulfúrico para conservar as amostras por mais tempo. “Não há um banco de dados dos nossos rios. Então, tudo o que a gente está fazendo de coleta é pioneiro”, diz o engenheiro químico e técnico de laboratório do QAT.
Os pesquisadores da UEA (da esquerda para a direita) Clodoaldo Oliveira, Douglas Siqueira e Gabriel Rodrigues buscam, com ajuda de um GPS, um ponto de coleta previamente definido (à esquerda). Irliane dos Santos, técnica de laboratório da UEA, analisa a água coletada menos de uma hora antes. Parâmetros com prazo de validade curto, como coliformes totais e termotolerantes, nitrato, nitrito, demanda biológica de oxigênio e demanda química de oxigênio são aferidos no barco. Os outros, na volta, em Manaus.
Enquanto isso, Douglas Siqueira imerge uma sonda a 30 centímetros da lâmina d’água e, após dois minutos, retira e anota os dados de pH, temperatura da água e do ar, oxigênio dissolvido e condutividade elétrica. O oxigênio dissolvido, um dos quatro parâmetros principais do IQA do rio Negro, é vital para a existência da vida aquática, destaca Siqueira, biólogo de 37 anos que integra o grupo de pesquisa desde 2021. Suas concentrações podem indicar, por exemplo, o contexto de lançamento de efluentes, a sazonalidade, a temperatura da água e possíveis alterações químicas – quanto menor a concentração, maior o indício de contaminação do rio. Em rios de águas pretas, o oxigênio dissolvido é naturalmente baixo, em decorrência do regime de águas que sobem e entram na floresta. O material orgânico da floresta alagada é decomposto, o que consome oxigênio.
“O pH da água está 5,14”, acrescenta Siqueira. “Nas áreas urbanas, o pH é quase neutro, às vezes até básico.” Desvios da faixa de pH de 4,5 a 5,5 em rio de águas pretas podem indicar ações antrópicas, como descarte de efluentes domésticos, ou mesmo naturais, como o desembocar de afluentes de águas brancas ou claras.
Em cerca de 20 minutos, a voadeira já está de volta e, no barco de pesquisa, o trio entrega as amostras para as técnicas dos laboratórios. Elas analisam os parâmetros com prazo de validade mais curto: coliformes totais e termotolerantes, nitrato, nitrito, demanda biológica de oxigênio (DBO) e demanda química de oxigênio (DQO). Os demais, como fósforo, fosfato, sólidos dissolvidos e metais, serão feitos após a viagem, já na UEA. O grupo possui expertise e equipamento para analisar mais de 160 parâmetros.
Fernanda Fraga, de 24 anos, começa o trabalho pelas análises de nitrito e nitrato, composições usadas para conservar alimentos processados e fixar cor e sabor. “São prejudiciais tanto para a saúde humana como para os ambientes aquáticos”, observa a bióloga. A presença desses químicos em grandes quantidades indica impacto de atividades como descarte irregular e poluição.
À tarde, Fraga processa as amostras de coliformes. Em um frasco de polietileno, com 100 mL da água, coloca o reagente que auxilia na proliferação de bactérias e agita o frasco até diluí-lo. Ao solubilizar, transfere para uma cartela onde a água, agora de cor amarela, é dividida em quadrados grandes e pequenos. As cartelas, então, são seladas em uma máquina e deixadas em uma incubadora por 24 horas. Após esse período, a cientista tem até quatro horas para fazer a leitura do resultado para coliformes totais. Se bactérias forem detectadas, o líquido fica com tons de rosa. Se estiver limpa, segue amarelada.
Faiz Haque e Evan Routhier, da Universidade de Harvard, coletam amostras de solo na mata ciliar, para entender a movimentação do mercúrio, que pode se deslocar da superfície do solo para partes mais profundas e chegar ao rio (à esquerda). No laboratório no barco, Routhier organiza os recipientes com a água coletada em pontos paralelos do rio Negro: na foz do rio Branco, na margem esquerda, as águas são mais claras; já na margem direita do Negro, sem influência das águas brancas, a água é bem mais escura.
Em seguida, Fraga faz a leitura de cada cartela em uma câmara escura para verificar a presença de coliformes termotolerantes, indicador de bactérias como a Escherichia coli, que pode causar doenças como diarreia e infecção urinária. “Os coliformes termotolerantes são o maior indicativo de efluente de esgoto sem tratamento. Eles revelam o estado das águas e são veículos de doenças”, completa Fernanda Vieira.
Vieira espera o fim das coletas do dia para preparar todas as amostras de demanda biológica de oxigênio (DBO). “A gente calcula o quanto de oxigênio as bactérias presentes em determinada amostra consomem”, explica a bióloga. Deposita 400 mL da amostra em um Becker e ajusta o pH com hidróxido de sódio, se precisar aumentar, ou ácido sulfúrico, se precisar baixar. Depois, coloca no sistema com frasco âmbar e um leitor de DBO e pinga quatro gotas de hidróxido de potássio, que estimula o crescimento apenas das bactérias que consomem oxigênio.
Por fim, leva as amostras processadas à incubadora, onde ficam por cinco dias a uma temperatura de 20ºC, em suportes com barras magnéticas que fazem as bactérias se mexerem e consumirem oxigênio. “Tem que dar até 90, dependendo do ambiente. Mais alto é indicativo de poluição”, diz Vieira.
No outro laboratório, a química Andreza Guimarães, de 30 anos, filtra as amostras para metais totais e dissolvidos. Ela prepara dois tipos de amostras para cada ponto de coleta: um filtro com material particulado e três frascos de vidro com a água do rio filtrada. São conservadas em geladeira, porque a análise acontece no laboratório na UEA, por uma técnica de espectrometria de emissão atômica por plasma acoplado indutivamente, que roda as amostras a cerca de 10.000ºC – quase o dobro da temperatura da superfície do Sol – e faz a leitura dos metais totais presentes.
Na bancada ao lado, a bióloga Irliane dos Santos, de 24 anos, prepara os frascos tubulares para análise da demanda química de oxigênio, que pode indicar efluentes industriais. Com uma pipeta, coloca em um frasco 3,5 mL de ácido sulfúrico concentrado com sulfato de prata, um líquido transparente, para auxiliar na reação. Depois, adiciona o reagente de digestão, 1,5 mL de ácido sulfúrico, de coloração laranja-avermelhada, e completa com 2,5 mL da água do Negro coletada. Repete o processo até finalizar 39 frascos, três para cada um dos 13 pontos do dia, um método chamado triplicata. Nos frascos, os líquidos passam por uma reação exotérmica que eleva a temperatura. Em seguida, são colocados no digestor, que os gira durante duas horas e mistura os líquidos antes heterogêneos. Na manhã seguinte, as amostras serão analisadas em um espectrômetro. Neste processo, o barco precisa estar em movimento.
Com economia baseada na pesca artesanal e no turismo, a cidade de Novo Airão fica em frente ao Parque Nacional de Anavilhanas, que protege o segundo maior arquipélago fluvial do mundo, com cerca de 400 ilhas e 60 lagos.
Na rotina ribeirinha, indicadores da conservação
Para o biólogo Adriano Nobre, de 35 anos, coordenador de campo e laboratório da expedição, o trabalho da UEA e de Harvard no rio Negro se destaca por não ser uma pesquisa pontual, e sim o início de um monitoramento contínuo da qualidade do ambiente aquático nos períodos de seca e cheia. Nobre é de Autazes, município no interior do Amazonas, e a vida rodeado pelos rios lhe fez centrar seus estudos na área de recursos hídricos. “Os ribeirinhos dependem da floresta e das águas para extrativismo, agricultura e pesca. A qualidade desses ambientes está inserida na saúde pública”, observa.
Essa perspectiva foi checada in loco quando atracamos em Moura, um distrito a 150 quilômetros da área urbana do município de Barcelos. Na pequena vila, 200 famílias vivem da pesca, da roça e da caça de subsistência, com algum trabalho em três pedreiras locais. Além do rio ser a hidrovia por onde chegam mantimentos, os moradores de Moura dependem do Negro para o consumo de água. Duas bombas instaladas na margem do rio abastecem a comunidade. Há também um poço privado da pedreira da Comissão de Aeroportos da Região Amazônica (Comara), da Força Aérea Brasileira, ao qual a população tem acesso limitado.
“Pra beber, a gente pega da Comara, que tem um poço com água filtrada. Mas, pra fazer comida, lavar, aí é do rio”, conta José Farias, de 60 anos, no alpendre de sua casa de madeira na entrada da vila. “A gente usa cloro e bebe. Não tem prejudicado.”
As análises coletadas em Moura podem servir de instrumento para a população se certificar da qualidade da água consumida e cobrar por mudanças, como um projeto para a perfuração de poços artesianos, já em tratativa com a prefeitura de Barcelos.
Moradores jogam vôlei em uma quadra à beira do rio na Vila de Moura, distrito de Barcelos. Nas cidades e comunidades ribeirinhas do Negro, a água do rio é utilizada para o consumo e atividades cotidianas. Ao diagnosticar a qualidade dessa água, o IQA serve de ferramenta para que as populações locais cobrem políticas públicas de saneamento básico.
A expedição pelo rio Negro é um dos 15 projetos do Programa de Monitoramento de Água, Ar e Solos do Estado do Amazonas (ProQAS/AM), uma iniciativa do QAT financiada pelo Instituto de Pesquisa Ambiental do Amazonas, pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas e pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Há cinco anos, outro projeto do programa monitora, a cada três meses, as cinco principais bacias da Grande Manaus e disponibiliza os dados em uma plataforma online.
Em 23 de março de 2024, o grupo de pesquisa da UEA apresentou o IQA para rios amazônicos de águas pretas, em um evento que reuniu cientistas e gestores públicos. Com este novo índice, os pesquisadores recalcularam os dados do monitoramento das bacias manauaras, para ter um retrato preciso ao adotar parâmetros e pesos mais adequados ao tipo de rio. Com isso, o IQA dos igarapés Educandos e São Raimundo, na Grande Manaus, subiu de 32 para 44, mas manteve a condição ruim. Os demais passaram para índices com classificação aceitável, conforme monitoramento de novembro passado: Tarumã-Açu (70), Tarumã-Mirim (68) e Puraquequara (62). A meta dos cientistas é expandir o trabalho para todas as microbacias manauaras, mas os atuais índices já fundamentam políticas públicas.
É o caso do Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus (Prosamim), iniciado pelo governo do Amazonas em 2003. Com o desenvolvimento do IQA e o monitoramento dos igarapés Educandos e São Raimundo, que cortam Manaus, identificou-se qualidade ruim na maioria dos pontos devido à ocupação das margens e descarte de efluentes. Até o final do programa, em 2021, foram reassentadas 29 mil pessoas e realizadas obras de mobilidade urbana, sistemas de drenagem e esgotamento sanitário.
No Tarumã-Açu, tem ocorrido uma invasão de mais de 1 mil flutuantes ao longo da orla, sobretudo para lazer ou locação, que intensificam a poluição já causada por casas, restaurantes, condomínios e dois lixões em igarapés próximos. A pedido da Vara do Meio Ambiente da Justiça do Amazonas, o grupo de pesquisa elaborou um relatório técnico que identificou uma alta preocupante nos níveis de poluentes. O juiz Moacir Pereira Batista, então, ordenou a retirada e o desmonte de todos os flutuantes até 31 de dezembro, mas a decisão não abrangeu condomínios e lixões nos arredores.
Reilson Dias da Costa e Irlane Mendes Bibiano em sua peixaria em Novo Airão. Pacu-galo, matrinxã, jaraqui e aracu-camanaru são as espécies mais procuradas pela população da cidade. “Pego peixe novo todo dia, fresquinho”, diz ele. “O peixe é minha vida.”
Vilão das águas: o ciclo do mercúrio nos rios
O barco de pesquisa da UEA foi projetado para que outros grupos pudessem embarcar e desenvolver seus próprios projetos, em parcerias. Na campanha de setembro, pesquisadores do laboratório Sunderland, da Universidade de Harvard – engajado no estudo da bioquímica de contaminantes globais – trabalharam na primeira etapa de uma pesquisa sobre o ciclo do mercúrio nos rios Negro e Madeira, suas origens naturais e antrópicas, possíveis ambientes contaminados e potencial exposição dos habitantes.
Os cientistas coletaram amostras de água, sedimentos do leito do rio, solo na mata ciliar e peixes que servem de alimento à população urbana e ribeirinha. “Queremos entender como o mercúrio e o carbono orgânico dissolvido podem interagir no rio e, eventualmente, resultar na metilação do mercúrio”, conta o bioquímico Evan Routhier, de 26 anos.
O metilmercúrio é a forma orgânica que se bioacumula nos organismos do rio e causa problemas de saúde, sobretudo com o consumo dos pescados. A medição dos níveis na água, no material particulado e no peixe indica o grau de risco de populações locais. Para mercúrio total, medem-se os tipos inorgânicos deste elemento químico que não se bioacumulam, mas ajudam a calcular o estoque que potencialmente pode virar metilmercúrio. O carbono orgânico dissolvido, por sua vez, pode se ligar ao mercúrio, e “é um fator importante para monitorar a quantidade de mercúrio disponível para metilação, e as taxas de metilação dentro do sistema”, continua Routhier.
Já os isótopos estáveis de mercúrio são uma ferramenta para verificar a movimentação do elemento no ambiente. É como uma “impressão digital”, classifica o cientista, a partir da qual é possível identificar a assinatura do mercúrio e determinar sua origem – na corrente, no lençol freático, na floresta. “Do mesmo modo, podemos medir isótopos no peixe, e comparar com os da água e outros meios, para entender o ciclo do mercúrio no ambiente.”
Não raro, a busca por respostas científicas como estas podem vir acompanhadas por uma dose de adrenalina. Em 11 de setembro, uma hora após deixarmos Manaus, os pesquisadores Clodoaldo Oliveira, Adriano Nobre, Evan Routhier e Faiz Haque (os dois últimos de Harvard) embarcam na voadeira e partem em alta velocidade até o chamado “estreito do Rio Negro”, a 22 quilômetros da capital. O local é a região onde as margens do Negro estão mais próximas, 1,62 quilômetro distantes entre si, o que resulta no trecho mais profundo da calha, com 120 metros.
O barco-laboratório segue ao encontro deles e passa pelo estreito. Uma tempestade se arma de repente, com nuvens carregadas e ventos fortes. Ainda não há sinal dos pesquisadores. Douglas Siqueira tenta se comunicar via rádio, mas, sem obter retorno, parte atrás deles em outra voadeira, com o piloto Michael Christian, no momento em que a chuva torrencial começa a cair. Os dois retornam uma hora depois, sem sucesso. Finalmente, na nossa rota rumo ao arquipélago de Anavilhanas, cruzamos com os pesquisadores, rebocados por uma família depois de três horas à deriva.
“Coletamos nossas amostras de água e sedimento e então o tempo virou totalmente”, diz Haque. “Acabamos encharcados pela tempestade. Mas foi uma experiência legal. Nenhum de nós entrou em pânico. Definitivamente, uma aventura.”
Desprendimento e coragem de fato são atributos para quem se dispõe a fazer pesquisa de campo na Amazônia. E disciplina. Por exemplo: nas cidades ao longo da campanha, de Manaus a Santa Isabel do Rio Negro, os pesquisadores de Harvard precisavam de peixes das espécies mais consumidas – e absolutamente frescos. “De preferência pescado e congelado na hora”, diz Routhier. Isso porque o metilmercúrio pode se degradar no calor e mascarar a quantidade exata. “Já o mercúrio total não degrada, mas, se o músculo começa a se decompor por estar no calor há muito tempo, pode se perder.”
Evan Routhier (em primeiro plano) compra tucunarés de um pescador local no porto de Santa Isabel do Rio Negro (à esquerda). O peixe fresco é medido para análise no laboratório do barco. Foi importante coletar uma variedade de peixes em termos de hábitos alimentares. “O lugar em que se alimentam no rio pode impactar nas concentrações de metilmercúrio”, diz Routhier.
No despertar de uma terça-feira, o movimento ainda está começando em Novo Airão quando caminhamos atrás de peixarias. A cidade fica em frente ao Parque Nacional de Anavilhanas, que protege o segundo maior arquipélago fluvial do mundo. A pesca artesanal e o ecoturismo movimentam a economia do município de 16 mil habitantes, a 115 quilômetros de Manaus, que possui conexão com a capital amazonense desde a construção da Ponte Rio Negro. Com auxílio dos pesquisadores da UEA, Routhier e Haque perguntaram aos peixeiros quais eram as espécies mais procuradas – jaraqui, pacu, sardinha, tucunaré, aracu.
“É importante também coletar uma variedade de peixes em termos de hábitos alimentares. O lugar em que se alimentam no rio pode impactar nas concentrações de metilmercúrio”, pontua Routhier. “Coletamos surubim, que é um peixe de couro e tende a se alimentar no fundo do rio, portanto, fonte potencial de bioacumulação.”
Na primeira parada, os pesquisadores compram aracu-camanaru e aracu-embaúba. Em seguida, na peixaria Habitart de Deus, adquirem jaraquis, peixe muito popular na região. Routhier me pede para perguntar ao peixeiro se a população local se preocupa com contaminação de mercúrio. O comerciante responde que não. “Mercúrio é mais onde tem ouro. No Negro não tem garimpo”, diz Reilson Dias da Costa, de 35 anos.
Costa cresceu em Manaus, no bairro Compensa, em uma época na qual as águas da capital “eram boas” a ponto de tomar banho de igarapé. Depois mudou-se para o interior, ao redor do rio Jauaperi, afluente do Negro, na fronteira com Roraima. Lá, trabalhava com pesca comercial, mas a atividade foi proibida com a criação de uma reserva extrativista. Com isso, migrou para Novo Airão em 2009, “um paraíso ecológico”, como define. Quando uma hérnia de disco o impediu de continuar na pesca, abriu a peixaria e passou a comprar de pescadores artesanais.
Ainda pela manhã, os pesquisadores embarcam na voadeira para uma saída. Routhier e Haque começam pelas coletas de água superficial, que servirá para análises de mercúrio, metilmercúrio e carbono orgânico dissolvido, e depois enchem dois recipientes de 20 litros, dos quais irão extrair material particulado para análises de isótopos estáveis de mercúrio. Em seguida, atracam em uma prainha e adentram a mata para pegar amostras de solo. Routhier cava com uma pá um buraco de até 20 centímetros de profundidade e remove a superfície. Haque coleta o solo da camada do primeiro centímetro e depois da faixa de 10 a 11 centímetros. O objetivo é estudar a mobilização profunda do mercúrio, “que drena da camada superficial para as mais baixas do solo, e eventualmente chega até a água”, explica Routhier. “Iremos comparar os isótopos da água e do solo para entender melhor a movimentação do mercúrio no ambiente.”
Enfim, navegamos por mais 1,5 quilômetro até uma ilha em Anavilhanas para succionar sedimentos do leito em dois locais. “O sedimento contribui para o ciclo do mercúrio. Ou como fonte, quando fica suspenso na coluna d’água, ou como sumidouro, conforme a substância particulada se deposita no leito”, diz Routhier.
Dos 25 pontos de coleta ao longo da expedição, os pesquisadores de Harvard apontaram a foz do rio Branco, maior afluente do Negro, como a área mais intrigante. “Há histórico de mineração de ouro nas cabeceiras. E, por ser um rio de águas brancas, pode haver uma assinatura diferente em termos de isótopos que entram ali”, explica Routhier. Rios de água branca, ou barrenta, como o Madeira e o Solimões, concentram mais sedimentos, nutrientes e possuem o pH mais elevado.
“No Branco, a água em si é clara, mas tem material particulado, enquanto a do Negro tem muito material orgânico dissolvido – por isso é escura –, mas poucas substâncias particuladas em suspensão”, completa o bioquímico.
No Negro, o material orgânico que vem da floresta é ácido, então se dissolve na água e isso diminui o pH. As diferenças são significativas entre as duas margens: na foz do Branco, entre 7 a 7,09; na do Negro, de 5,2 a 5,22. “O pH é medido em escala logarítmica, elevado à décima potência. Uma queda de 1 ponto é uma diferença grande, e aqui são quase 2”, ressalta Routhier. “No processo, certamente afeta a ligação de mercúrio, ou se dissolve na água, e talvez na disponibilidade para microrganismos fazerem metilmercúrio.”
A floresta pujante cerca Barcelos, um contexto comum nos municípios e comunidades ao longo do rio Negro. Essa região é uma das mais conservadas de toda a Amazônia, com diversas unidades de conservação e terras indígenas.
Pesquisas de campo sob ameaça pirata
Mais de uma vez ao longo da viagem, ribeirinhos alertaram os cientistas sobre a presença de piratas no rio Negro. Um risco comum em bacias com alta incidência de garimpo ilegal, como o Madeira, ou em rotas do narcotráfico e faixas de fronteira, como o Solimões, os bandidos que roubam embarcações e combustível são uma novidade no Médio Rio Negro.
O risco paira sobre a região de Barcelos, que se intitula “a capital internacional da pesca esportiva”. Na temporada, que vai do final de agosto a janeiro, cruza-se a todo instante com botes, barcos e lanchas cheias de turistas esperançosos em pegar os enormes tucunarés, símbolo do município. Os pescadores devolvem os animais para a água após capturá-los e fazer o tradicional registro fotográfico e do tamanho e peso.
Nas proximidades do arquipélago de Mariuá, chegam até nós notícias de ataques piratas em uma área onde havíamos ancorado dias antes, a comunidade Dom Pedro II, de pouquíssimas casas. Precavidos, em vez de manter as coletas vespertinas, os pesquisadores decidem encerrar a atividade no início da tarde e pernoitar em segurança no porto de Barcelos.
A ameaça, contudo, continua por perto. Na manhã seguinte, na altura da localidade conhecida como Sítio Caioé, a equipe se prepara para iniciar a coleta de água quando uma lancha surge de repente, em alta velocidade. Apreensão. “Mão na cabeça!”, grita um dos homens na proa da embarcação blindada, com os fuzis em riste. São policiais civis. Uma segunda lancha encosta na sequência.
Após se certificarem de que somos pesquisadores e jornalistas, os policiais nos alertam sobre a violência. Corremos riscos: na noite anterior, os piratas tinham matado uma pessoa na região. Em uma operação conjunta com a Polícia Militar, eles preparavam uma emboscada para os criminosos. “Estamos esperando já faz alguns dias”, diz o capitão. (Dias depois, os policiais surpreenderam os piratas na mesma área. Em janeiro, o governo do Amazonas instalou uma base fluvial no encontro dos rios Negro e Branco, administrada pela Secretaria de Estado de Segurança Pública.)
A tensão da abordagem fluvial não impediu que os três pesquisadores da UEA concluíssem o trabalho a bordo da voadeira: eles conseguiram coletar 18 pontos em um só dia, totalizando 50 locais amostrados pelo grupo da UEA na expedição. Antes de anoitecer, em um ponto na região do estreito do rio Negro, próximo à aldeia Tuyuka, atracaram em uma praia e esperaram. Enquanto isso, o barco de pesquisa descia por entre as ilhas de Anavilhanas, em meio a uma tempestade carregada de raios. O rio já estava tomado pela escuridão da noite quando todos se reencontraram – exaustos pelo desgastante trabalho de campo, porém satisfeitos com a expedição e os dados que já observavam. Os resultados preliminares estavam dentro do esperado: poucos pontos geraram anormalidades na qualidade da água. “O corpo hídrico está saudável”, observa a bióloga Fernanda Vieira.
O encontro das águas distintas dos rios Branco e Negro é uma área de grande beleza natural. As florestas alagáveis da região, como na Reserva Extrativista Baixo Rio Branco-Jauaperi, chamaram a atenção dos cientistas pela umidade intensa da mata e pela explosão de vida selvagem.
Mesmo na seca severa, boa conservação das águas
O trabalho do grupo da UEA chegou a resultados positivos. O novo IQA indica que, no rio Negro, 18 pontos encontram-se em situação ótima, 30 em condição boa e dois em estado aceitável. A média dos 50 locais amostrados é de 84 pontos, no limite máximo da categoria “boa”.
A partir da análise dos dados das campanhas no rio Negro, os cientistas realizaram adaptações para chegar a um IQA ideal para esse tipo de corpo hídrico. Definiram que quatro dos nove parâmetros para um rio de água preta teriam o mesmo peso cada no valor total do índice, 15%: pH, oxigênio dissolvido, coliformes termotolerantes e condutividade elétrica – este último substituiu a temperatura da água, que mostrou pouca influência na qualidade.
A condutividade elétrica é um indicador importante de poluição, avalia o físico-químico Sérgio Duvoisin Júnior, da UEA. Em rios de água preta, os níveis são muito baixos pela quantidade de íons dissolvidos ser pequena, consequência da pobreza em nutrientes. A média dos pontos foi de 9 microsiemens, dentro do limite saudável que é de 60. “Os resultados foram muito homogêneos em relação à condutividade, o que mostra que é um parâmetro característico de rios de água negra.”
Com o trabalho, cientistas, população e poder público começam a entender com mais profundidade o rio Negro, que “está muito saudável”, considera Duvoisin. Contudo, a análise individual dos parâmetros físico-químicos e microbiológicos dá indícios de pontos de atenção nos trechos ao redor de cidades e comunidades, por exemplo, em relação ao saneamento básico. Trata-se de um diagnóstico precoce que pode subsidiar ações do poder público na fase inicial do problema, permitindo uma atuação mais efetiva e menos custosa. “Agora, é usar esse conhecimento para que o gestor público dessas pequenas comunidades comece a tomar providências para deixar do jeito que está – preservar uma coisa que está perfeita.”
“Do ponto de vista científico, a gente tem uma referência inédita de uma seca severa”, continua Duvoisin, que destaca a importância de fazer campanhas constantes de monitoramento. “Mesmo com a maior seca, o rio aguentou o tranco e manteve suas características. Para a qualidade da água, não foi tão impactante.”
Os pesquisadores de Harvard, por sua vez, já planejam um trabalho contínuo na região, a fim de entender melhor o ciclo do mercúrio e a dinâmica conforme a sazonalidade, bem como os tipos de relação entre carbono e mercúrio.
Na descida a caminho de Manaus, o bioquímico Evan Routhier faz um balanço da expedição. Entender a exposição dos moradores ao mercúrio é vital para a gestão da saúde pública, resume ele, enaltecendo aquela que foi a maior experiência que viveu na Amazônia.
“Esse é apenas o início do que pode ser um estudo de longo prazo. Espero que esses dados sejam úteis e possam nortear as ações de saúde pública para o rio Negro e comunidades locais”, completa Routhier.
Com a seca, a praia em frente a Barcelos revela sua areia branca em uma extensão além do comum, sob as águas escuras do Negro. A estiagem atípica foi resultado de um evento climático extremo que combinou o aquecimento das águas do Pacífico, pelo fenômeno El Niño, com o aquecimento do Atlântico Norte, potencializados pela emergência climática.
Como produzimos esta reportagem
Os repórteres da Ambiental Media viajaram ao rio Negro com o apoio do Escritório da Universidade de Harvard em São Paulo, que é vinculado ao “Brazil Office of the David Rockefeller Center for Latin American Studies at Harvard University” (Escritório do Brasil no Centro David Rockefeller de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Harvard).
Os cientistas listados abaixo fazem parte do projeto de pesquisa liderado pelas universidades do Estado do Amazonas (UEA) e de Harvard, mas não tiveram qualquer ingerência sobre os conteúdos desenvolvidos pelo nosso time de jornalistas, seguindo as diretrizes éticas do jornalismo independente e transparente produzido pela Ambiental, conforme os termos de uso em nosso site (item 6).
Equipes
Ambiental Media
Thiago Medaglia – direção do projeto
Ronaldo Ribeiro – edição
Kevin Damasio – texto e reportagem
Bruno Kelly – fotos
Rodolfo Almeida – mapas
Luís Lima – desenvolvedor frontend
Laura Kurtzberg – consultora de visualização de dados e mapas
Sofia Beiras – design editorial
Colaboraram: Fernanda Lourenço e Miguel Vilela (edição e coordenação)
Universidade do Estado do Amazonas (UEA)
Sérgio Duvoisin Júnior – físico-químico, professor associado da UEA, líder do grupo de pesquisa Química Aplicada à Tecnologia (QAT)
Rafael Lopes e Oliveira – biólogo, professor adjunto da UEA e pesquisador do grupo QAT
Adriano Nobre Arcos – biólogo, pós-doutorando no grupo QAT/UEA e coordenador de campo e laboratório da expedição
Fernanda Vieira Mattos – bióloga, mestranda no grupo QAT/UEA e coordenadora de campo e laboratório da expedição
Douglas Siqueira – biólogo, pesquisador do grupo QAT/UEA
Gabriel Rodrigues – engenheiro químico, técnico de laboratório do QAT/UEA
José Clodoaldo Oliveira – geógrafo, mestrando em recursos hídricos e pesquisador do QAT/UEA
Andreza Guimarães – química, técnica de laboratório do QAT/UEA
Fernanda Fraga – bióloga, técnica de laboratório do QAT/UEA
Irliane dos Santos – bióloga, técnica de laboratório do QAT/UEA
Universidade de Harvard
Evan Routhier – bioquímico, estudante de doutorado do Sunderland Group
Faiz Haque – mestre em química analítica, pesquisador do Sunderland Lab
Integrantes do projeto de pesquisa, mas não embarcados
Elsie Sunderland – professora de Química Ambiental e Ciências Planetária e Terrestre do Sunderland Lab
Scot Martin – professor de Química Ambiental e de Ciências Planetária e Terrestre; diretor do Laboratório de Química Ambiental, na Escola de Engenharia e Ciências Aplicadas da Universidade de Harvard
Outros cientistas entrevistados pelo repórter Kevin Damasio
Ane Alencar – geógrafa, diretora de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e coordenadora do MapBiomas Fogo
Cecília Gontijo Leal – bióloga, pesquisadora da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, e integra o comitê gestor da Rede Amazônia Sustentável (RAS)