Reportagem: Marina Gama Cubas
O inédito Índice de Impacto nas Águas da Amazônia (IIAA), desenvolvido pela Ambiental Media, aponta que as Terras Indígenas são a melhor alternativa para a proteção dos ecossistemas aquáticos amazônicos.
Argumento a argumento. Voto a voto. Indígenas e ambientalistas acompanharam com tensão o julgamento do marco temporal, retomado em setembro pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A preocupação tinha motivo: a tese previa que os povos indígenas só teriam direito à demarcação da terra que ocupam se comprovassem que estavam no local no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Após semanas de julgamento, o marco foi derrubado por 9 votos a dois.
Dados do Índice de Impacto nas Águas da Amazônia específicos das Terras Indígenas (TIs) e Unidades de Conservação (UCs) da Amazônia Legal não deixam dúvidas: os territórios ocupados pelos povos originários são uma barreira decisiva ao avanço de atividades humanas predatórias e seus impactos sobre rios, lagos, igarapés e florestas alagadas. Da proteção desses recursos, dependemos todos.
Indígenas de diferentes etnias fazem passeata contra marco temporal na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Foto: Antônio Cruz / Agência Brasil
Indígenas e a proteção das águas da Amazônia
O Índice de Impacto nas Águas da Amazônia (IIAA) aponta que 20% das microbacias que cortam a Amazônia brasileira estão altamente impactadas, considerando nove fatores de pressão relacionados a ações humanas:
- degradação florestal;
- cruzamento de estradas com rios;
- área urbana;
- mineração industrial;
- garimpo;
- agropecuária;
- hidrelétrica;
- hidrovia;
- mudanças climáticas.
O impacto das atividades listadas acima é menor em Terras Indígenas (TIs). Das 376 TIs localizadas na bacia amazônica brasileira, 13,6% estão em microbacias que, na média, são altamente impactadas por ação humana. Percentual menor, inclusive, que o de Unidades de Conservação (UCs), tais como Parques Nacionais, Reservas Biológicas, Reservas Extrativistas e outras, já que 22,8% delas encontram-se em microbacias que, na média, têm alto impacto.
Equilíbrio frágil
O impacto nas águas da Amazônia não costuma estar no centro das atenções, diferentemente do desmatamento. Os povos indígenas, porém, sempre souberam da intrínseca relação entre os ecossistemas aquáticos e terrestres.
O cacique Zé Bajaga, liderança do povo Apurinã e coordenador da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp), vive na Terra Indígena do Caititu, localizada no estado do Amazonas e coabitada pelos povos Apurinã, Jamamadi e Paumari, onde o impacto em parte das microbacias é médio-baixo, de acordo com o Índice de Impacto nas Águas da Amazônia (IIAA).
Para Bajaga, o grande problema é o desmatamento fora do território, que afeta o entorno do percurso das águas. “As pessoas estão derrubando as árvores próximas da nascente e isso faz com que aconteça o aterro dos igarapés, que podem desaparecer”.
Conhecimento ancestral e ciência apontam para a mesma conclusão: “A primeira coisa importante a entender é a forma como a mudança da paisagem interfere no riacho. A floresta tem uma função dentro do rio. Ela protege o rio de sedimentos que podem ser carreados com a chuva. Quando chove em uma floresta em pé, ela não arrasta partículas de solo. Se a floresta é cortada e chove, o solo é carreado para dentro do rio”, explica o biólogo Paulo Pompeu, da Universidade Federal de Lavras (UFLA), especialista em Ecologia e Conservação.
No Amazonas, o cacique Zé Bajaga está preocupado com a ascensão cada vez mais rápida da agricultura e a construção de estradas. As consequências são inúmeras, desde o desaparecimento de árvores frutíferas que alimentam os animais silvestres, modificação no regime de chuvas, diminuição do volume de rios e igarapés, até a mudança da temperatura nas águas. “Antes, a gente nunca cruzava o rio Ituxi porque não era possível. Hoje, dá pra atravessar com a água na cintura.”
Ao que tudo indica, eventos climáticos extremos têm sido evidenciados pela frequência maior de temporais e de períodos longos de estiagem. “Estamos na época do verão agora aqui na nossa região, nunca passamos mais do que dez dias sem chuva. Agora, são meses, tudo seco mesmo. Pode pegar fogo muito rápido”, teme o cacique.
Solução nas áreas protegidas
A demarcação de terras prevê a manutenção da cultura indígena, o uso sustentável dos recursos naturais pelas comunidades que lá habitam e a conservação da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos – essenciais para toda a sociedade.
“Quando a gente pensa em comunidades indígenas, o tipo de uso e a relação com o solo é completamente diferente [do paradigma industrial]. Não há um tipo de cultivo que deixa o solo exposto durante um grande tempo, possibilitando, por exemplo, que o solo seja arrastado para dentro do riacho em períodos de chuva. Não há a presença de estradas com trânsito de caminhões, que também exercem um grande impacto. O uso, o convívio e a modificação na paisagem têm potencial muito menor de alterar a condição do ambiente aquático entre os povos tradicionais”, explica Pompeu.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) publicou um relatório este ano alertando para as crescentes ameaças às florestas e às comunidades nos territórios indígenas, além de reconhecer o papel central desses povos na conservação ambiental.
É importante ressaltar que, apesar de terem um maior percentual de microbacias com impacto alto em comparação às Terras Indígenas, as Unidades de Conservação também cumprem um papel fundamental para a preservação das águas e o futuro do bioma, explica Paulo Pompeu. “Em geral, o grau de conservação dos ambientes aquáticos dessas áreas é muito superior ao de regiões sem proteção legal.”
Segundo o biólogo, um dos desafios para proteger essas unidades está na fiscalização. Ainda que sob constante ameaça por conta da violência no campo brasileiro, a presença dos indígenas em seus territórios acaba por frear um avanço que poderia ser ainda mais violento do que já é. Nas UCs, por outro lado, há um número insuficiente de fiscais, informação corroborada por Bruno Delano, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que trabalha na Floresta Nacional do Tapajós, no Pará. “Temos poucos recursos humanos para dar conta de tudo, pois são muitas demandas estabelecidas no plano de manejo. É muita coisa para poucas pessoas”, avalia.
Um futuro biodiverso passa pelo desenvolvimento de políticas públicas para resolver esta e outras questões. Entre as mais urgentes está garantir aos indígenas o direito e a segurança para ocupar suas terras. “Se, no futuro, conseguirmos resolver esses grandes dilemas relacionados à qualidade da água, serão esses rios que hoje estão preservados que vão possibilitar que outros se recuperem”, explica Pompeu.
O termo usado pelo pesquisador para essas áreas é “fontes para recolonização futura”, já que espécies aquáticas não mais encontradas em uma determinada região podem voltar a colonizar aquela mesma área.
Pompeu lembra que as intervenções dos povos originários no meio ambiente são muito antigas, mas seu modo de vida não resultou em impactos extremos. “Eles estão ali há milhares de anos porque aprenderam a conviver. É uma questão de sobrevivência: viver da maneira mais harmônica possível, sem prejudicar o curso d’água.”
Colaboraram nesta edição:
Reportagem, mapa e dados: Marina Martinez, Letícia Klein, Laura Kurtzberg, Sofia Beiras
Foto da capa: André Dib / Ambiental Media
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