Mais da metade das multas por fogo e desmatamento na Amazônia aconteceram em apenas 12 municípios

Reportagem: Marina Martinez

Cruzamento de dados inédito, que reúne áreas queimadas e desmatadas na Amazônia e as multas aplicadas pelo Ibama por essas infrações, aponta por onde “a boiada passou” durante o governo Bolsonaro.

A Amazônia Legal tem um total de 772 municípios, mas, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, apenas 12 concentraram mais da metade das multas aplicadas pelo Ibama por infrações relacionadas a fogo e desmatamento. Estes mesmos municípios também foram os campeões em áreas queimadas e desmatadas entre agosto de 2019 e julho de 2022, intervalo analisado pelo time da Ambiental Media em parceria com o Data Fixers.

A análise dos dados mostra que a Amazônia Legal teve mais de 35 mil km² de florestas desmatadas – o equivalente a uma vez e meia a área do estado de Sergipe – e mais de 260 mil focos de calor detectados no período pelos satélites de alta resolução utilizados pelo Inpe em seus sistemas de monitoramento.

Por que 12 municípios?

Os 10 municípios com maior extensão de áreas desmatadas entre 2019 e 2022, de acordo com os dados do PRODES/INPE, são: 

  1. Altamira (PA)
  2. São Félix do Xingu (PA)
  3. Lábrea (AM)
  4. Porto Velho (RO)
  5. Apuí (AM)
  6. Novo Progresso (PA)
  7. Itaituba (PA)
  8. Colniza (MT)
  9. Portel (PA)
  10. Pacajá (PA)

os 10 municípios com maior número de focos de calor no mesmo período, de acordo com os dados do BDQueimadas/INPE, são: 

  1. Altamira (PA)
  2. São Félix do Xingu (PA)
  3. Porto Velho (RO)
  4. Lábrea (AM)
  5. Apuí (AM)
  6. Novo Progresso (PA)
  7. Colniza (MT)
  8. Feijó (AC)
  9. Itaituba (PA)
  10. Novo Aripuanã (AM)

Conforme explicamos na reportagem especial Cortina de Fumaça, o fogo é a última etapa no processo do desmatamento criminoso, o que faz com que muitos dos municípios nas duas listas sejam os mesmos. Ao cruzar essas duas camadas de dados, chegamos a um total de 12 municípios.

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Análise considera dados entre agosto de 2019 e julho de 2022 dos sistemas PRODES e BDQueimadas, ambos do INPE, que monitoram o desmatamento e os alertas de fogo na região.

Crimes sem castigo

Durante o governo Bolsonaro, os índices de desmatamento na Amazônia Legal aumentaram 94% nas áreas protegidas em comparação aos quatro anos anteriores (governos de Dilma Rousseff e Michel Temer), de acordo com análise do Instituto Socioambiental. Ainda assim, o número de processos com multas pagas por crimes ambientais sofreu efeito inverso: levantamento feito por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) indica que a quantidade de multas pagas caiu de uma média de 688 entre os anos de 2014 e 2018 para uma média inferior a 44 em 2019 e 2020. Por sua vez, a análise da Ambiental Media evidencia que, nestes mesmos anos (19-20), nenhuma multa foi quitada nos 12 municípios que lideram os rankings de fogo e desmatamento.

Segundo Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas no Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama (2016-2018), a taxa de multas quitadas sempre foi baixa por conta de uma prática disseminada entre a maioria dos autuados, especialmente aqueles com maior poder financeiro: a de ingressar com todos os recursos possíveis no processo sancionador do Ibama para adiar o pagamento.

Para piorar, o número de servidores na ativa do Ibama sofreu queda contínua desde o início de 2010 e hoje corresponde à “metade do efetivo necessário”, o que gera lentidão e ineficiência no julgamento das autuações. De acordo com o Relatório de Gestão do Exercício de 2022, 2.899 cargos encontravam-se ocupados, representando 53% do total legalmente previsto para o órgão.

Calma, fica pior

Apesar das brechas legais relacionadas ao pagamento das multas serem de longa data, os problemas se agravaram durante o governo Bolsonaro. “Foram feitas mudanças no processo sancionador ambiental que estavam levando à prescrição maciça de processos”, diz a ex-presidente do Ibama.

Uma delas – introduzida sob a gestão do então presidente do órgão, Eduardo Bim, por meio do decreto nº 9.760/2019 – foi a adição de uma etapa no processo que tornou obrigatória uma audiência de conciliação entre o infrator e o Ibama antes do julgamento da multa. Isso gerou ainda mais lentidão e contribuiu para milhares de prescrições já que, por norma, se não houver nenhuma movimentação no procedimento de apuração de uma infração ambiental por três anos, a multa prescreve.   

Apenas nos 12 municípios amazônicos em destaque, 367 multas acabaram prescritas entre janeiro de 2019 e março de 2022. Com elas, os cofres públicos deixaram de arrecadar mais de R$ 50 milhões.

Araújo avalia ainda que as operações de fiscalização dos crimes ambientais pelo Ibama foram “atrapalhadas” no período devido à nomeação de pessoas sem conhecimento técnico, principalmente militares, para a coordenação. “A fiscalização ambiental é bastante especializada e tem uma sofisticação tecnológica de cruzamento de dados com a qual os militares não estão acostumados.”

Os efeitos foram sentidos em diversas localidades amazônicas. Porto Velho, em Rondônia, por exemplo, embora tenha ocupado o terceiro e quarto lugares no ranking de municípios com mais áreas queimadas e desmatadas na Amazônia, respectivamente, recebeu apenas 22 multas por fogo e desmatamento no período de 2019 a 2022 – além de 204 prescritas, que, somadas, chegam ao valor de R$ 24 milhões perdidos pela União em arrecadação.

A lenta reconstrução

O Instituto Talanoa, organização social com foco em melhorar a tomada de decisão e acelerar a ação climática no Brasil, acompanha desde 2019 os sinais políticos de mudanças relevantes e os atos do Executivo Federal, assim como seus efeitos. Dados levantados pelo instituto apontam que ações infralegais foram uma estratégia para a “desconstrução”. 

“As medidas infralegais têm o poder de regulamentar as leis, sem passar pelo processo e pelo crivo do Legislativo, assim como a tomada de decisão pode ser feita sem transparência e participação, como vimos na gestão Bolsonaro”, informa a organização. No fim de 2022, o Política por Inteiro, iniciativa de monitoramento do Instituto Tanaloa, publicou o relatório “Reconstrução”, indicando 401 atos do Poder Executivo que deveriam ser revogados ou revisados. O monitoramento segue no governo Lula. Segundo o instituto, “até agora já foram revogados ou revisados apenas 38 atos, também foram publicadas 177 normas consideradas parte do processo de reconstrução”. 

Os dados divulgados pelo Inpe na última semana indicam uma redução de 22% na taxa de desmatamento na Amazônia entre agosto de 2022 e julho de 2023 em comparação aos 12 meses anteriores. É o melhor resultado desde 2019, o que vai permitir ao Brasil chegar à Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2023, em Dubai, ao final deste mês, com boas notícias na bagagem. Mas é cedo para comemorar, conforme a seca histórica e a fumaça dos incêndios florestais, sobretudo no Amazonas, deixam claro. Impulsionado por fenômenos climáticos como o El Niño, o fogo na Amazônia também é alimentado por outro combustível: o da impunidade perante os crimes ambientais.

Colaboraram nesta edição:

Infografia: Laura Kurtzberg, Sofia Beiras

Análise de dados: Luiz Fernando Toledo 

Edição: Fernanda Lourenço, Letícia Klein, Marina Gama Cubas e Thiago Medaglia

Foto da capa: Flavio Forner / Ambiental Media

O que vem por aí

A Capivara Post faz parte do projeto Loja de Dados Ambientais, um dos vencedores do Desafio da Inovação do Google News Initiative 2022, e conta com o apoio do Instituto Serrapilheira. Na plataforma, serão oferecidas bases de dados tratadas e ricas em metadados, além de análises, inclusive sobre desmatamento e queimadas.

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