O avanço do oceano pode tirar Marajó do mapa?

Reportagem: Fernanda Lourenço

Análise aponta que parte considerável da ilha pode ficar submersa nas próximas décadas. De acordo com um estudo, o Brasil está entre os 20 países com mais de 25 milhões de habitantes que mais serão afetados pela subida do nível do mar, ocupando a 17ª posição.

Uma ilha no meio de duas das maiores massas de água do planeta. Marajó é um lugar único no mundo, regido por potentes ciclos hidrológicos. E, por isso mesmo, um dos mais suscetíveis ao aumento do nível do mar.

Há anos os marajoaras vêm sentindo que o frágil equilíbrio do ecossistema local está em risco. A percepção é confirmada pela ciência: um mapa desenvolvido pela Climate Central – organização independente que pesquisa as mudanças climáticas e seus impactos – indica que uma área considerável do Marajó pode ficar submersa nas próximas décadas. Com base em projeções de elevação do nível do mar divulgadas em 2021 pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC, o mapa mostra o risco de inundação em regiões costeiras do Brasil e do mundo, década a década, considerando a trajetória atual de emissões de carbono.

Projeções de avanço do mar na Ilha de Marajó de 2030 a 2150, feitas pela Climate Central, na trajetória atual de emissões de CO2.

O senso de urgência, ao que tudo indica, só não é compartilhado por tomadores de decisão em diferentes esferas de poder. “É uma ilha cercada por água e a gente não tem hoje políticas públicas de mitigação climática. É um deserto de dados, de informação, de reportação do que está acontecendo. É como se o Marajó não existisse. A gente não consegue participar dos espaços em que estão sendo debatidas essas questões”, diz Mariane Castro, moradora do município de Muaná e gestora de comunicação do Observatório do Marajó, iniciativa que organiza dados para formar tecnologias sociais acessíveis à população.

O Brasil está entre os 20 países com mais de 25 milhões de habitantes que mais serão afetados pela subida do nível do mar, ocupando a 17ª posição na lista, de acordo com um estudo com coautoria de Benjamin Strauss, fundador da Climate Central. Segundo o artigo, basta que a temperatura global aumente em 1,5 ºC para que o mar na costa brasileira se eleve em 3 metros. O estudo não apresenta dados específicos do Marajó, mas destaca que as ilhas têm uma probabilidade muito maior de ficarem submersas. A altitude média do Marajó é de 9 metros.

Vulnerabilidade dos municípios

Marcos Ronielly, pesquisador na área de climatologia do Instituto Federal do Pará, publicou em 2021, com mais quatro cientistas, um artigo sobre a vulnerabilidade socioambiental às mudanças climáticas de 30 municípios do litoral do Pará, sete deles no Marajó. Foram avaliados dois cenários: estabilização das emissões de gases do efeito estufa até 2100 e aumento das emissões até 2100.

O resultado é o Índice de Vulnerabilidade dos Municípios (IVM), que varia de 0 (grupo menos vulnerável) a 1 (grupo mais vulnerável). Afuá, no norte da ilha, uma cidade inteira sobre palafitas, é a única que atingiu o índice 1 nos dois cenários – veja os índices de todos os municípios avaliados.

Além da baixa altitude, outra variável importante é a capacidade de adaptação, como o acesso a serviços de saúde. “Os sete municípios da Ilha do Marajó praticamente não têm infraestrutura”, explica Ronielly.

Pescador e o neto no Rio Atatá, no município de Muaná, no Marajó. Enquanto Celino limpa as puquecas – tipo de isca feita com babaçu e farelo para pegar camarões – o neto alimenta os patos. Foto: Eliseu Pereira

Equilíbrio frágil

A preocupação das comunidades não é gratuita. Alterações na temperatura e no nível do mar podem desencadear impactos em cascata. O predomínio de água doce ou salgada, por exemplo. O cientista socioambiental Kildren Pantoja, que hoje mora em Brasília, tem percebido mudanças ao voltar para visitar a família em Salvaterra. Para ele, o mar parece estar mais forte.

“Da última vez que fui visitar meus pais, me assustei com a quantidade de gaivotas. Gaivota é uma ave marinha. A água está muito mais salgada do que antes, os peixes estão mudando. Isso tudo complica a situação, principalmente dos pescadores artesanais. A aplicação do conhecimento tradicional muda totalmente quando muda o bioma”, diz.

Em Afuá, as famílias extrativistas percebem a diminuição da quantidade de açaí e as mudanças nos períodos de safra. Também chama atenção a queda na produção de camarão. “Eram 50 quilos, 20 quilos. Hoje, 1 quilo, 2 quilos. A água aqueceu e diminuiu o volume. É como se tivesse desaparecido a moradia dos camarões, além disso, eles estão miúdos e às vezes parecem doentes”, diz Kátia Pantoja, moradora há 23 anos da comunidade de pescadores São José do Rio Maniva.

Um terço do Marajó debaixo d’água

Márcio Valeriano, professor e pesquisador no campo de Geociências no Inpe, participou da elaboração, ainda em 2006, de uma uma simulação que mostrou que, se o nível do oceano subisse 2 metros, uma área correspondente a 28% da ilha desapareceria.

“No Marajó, eu tenho certeza que eles lidam com sistemas muito mais frágeis. Eles estão em um sistema estuarino gigantesco, o maior da Terra, que é muito delicado”, diz. “Estão em um ambiente que depende do equilíbrio entre dois: o marítimo e o pluvial.”

Ainda em 2007, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) chegou a citar a projeção feita pelo Inpe em um levantamento que fazia “parte da estratégia do ministério de se antecipar aos problemas”. Mas pouco foi feito.

A Ambiental Media procurou o MMA, que indicou algumas medidas recentes, como a instalação de nove estações meteorológicas em diferentes municípios, inclusive do Marajó, pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará. Os equipamentos vão servir de base para a avaliação dos efeitos das mudanças climáticas e também auxiliar o Sistema Estadual de Defesa Civil em ações para mitigar eventos extremos.

Além disso, o MMA lembrou a retomada neste ano do programa Bolsa Verde, que realiza pagamentos trimestrais de R$ 600 para famílias extrativistas que se comprometam a utilizar os recursos naturais de forma sustentável.

Rio Atuá, em Muaná: a pesca e o extrativismo do açaí, atividades essenciais no município, estão ameaçadas. Foto: Eliseu Pereira

Injustiça climática

Sem políticas públicas, os marajoaras usam o conhecimento tradicional para fazer o que podem. Em Soure, muitas casas se erguem sobre palafitas para driblar as mudanças na maré.

“Chegava março, tinha que trocar as casas que ficavam perto do rio e deslocar mais para dentro da floresta. Em 2010, a gente viu que poderia fazer uma barreira com buchas de coco e um paredão de árvores”, conta Matheus Adams, ativista pela justiça climática. De lá para cá, a comunidade não precisou mais se mudar, mas o jovem sabe que a barreira não será mais suficiente em breve. “Futuramente, as buchas de coco não vão resolver.”

Kildren Pantoja explica que a ocupação da ilha repete o que aconteceu em todo o Brasil: novos colonizadores “empurram” as populações vulneráveis para os locais menos valorizados. “São lugares que sofrem um impacto muito severo das mudanças das marés, por serem áreas de igapó (floresta alagada). Quem está nestas áreas é que vai sofrer as maiores consequências”, lamenta.

Para Pantoja, o caminho está na reparação por parte dos países que mais colaboraram para a crise climática, e na valorização dos conhecimentos tradicionais. “Eu acredito que é um trabalho de ouvir essas populações, perceber os modos de vida, as formas como elas enxergam o mundo, a relação com a natureza, e tentar triplicar isso. Colocar isso para as populações mais urbanizadas, de que existe outra forma de encarar o consumo, as formas produtivas, a relação com a natureza.”

Enquanto o atual governo federal investe na bandeira da produção de petróleo na região da foz do Amazonas e capitaliza em cima da COP 30 em Belém em 2025, a Ilha de Marajó, vizinha à capital paraense e das localidades mais vulneráveis a acidentes caso a exploração seja liberada, segue longe de onde deveria estar: no centro do debate climático no Brasil.

Colaboraram nesta edição:
Reportagem, mapa e dados: Marina Martinez, Letícia Klein, Marina Gama Cubas, Laura Kurtzberg, Sofia Beiras
Edição: Xavier Bartaburu

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