Reportagem: Marina Martinez
O plano energético nacional é controverso. Dados e relatos de especialistas revelam uma aposta na expansão da geração de energia elétrica a partir do gás natural, um combustível fóssil poluente e caro, que pode comprometer a transição energética no Brasil e aumentar a conta de luz.
Em que pese o altíssimo custo social e ambiental de sua principal fonte de eletricidade, as hidrelétricas, o Brasil conta com uma das matrizes mais limpas do mundo e, por isso, reclama um protagonismo na agenda global de clima e transição energética. Porém, o planejamento energético nacional aposta em duplicar, até 2032, a produção de gás natural, um combustível fóssil poluente e caro.
O Plano Decenal de Expansão de Energia mais recente do Ministério de Minas e Energia prevê um crescimento exponencial na produção bruta de gás natural no país: de 158 milhões para 323 milhões de metros cúbicos por dia até 2032.
Os cálculos não levam em conta o enorme impacto socioambiental das hidrelétricas, nem das grandes – como Belo Monte –, nem das pequenas, que matam a biodiversidade ao desconectar rios amazônicos, entre outros problemas. Além disso, não são considerados os impactos para gerar energia eólica e energia solar, mas os números deixam evidente a maior eficiência de ambas frente ao gás natural.
Das dez usinas termelétricas (UTEs) movidas a energia fóssil (petróleo, gás natural ou carvão) de maior potência outorgadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), nove são termelétricas a gás, das quais duas ainda estão em construção, incluindo a que será a de maior capacidade instalada do Brasil – a GNA II, em São João da Barra (RJ).
Lobby do gás
Esse crescimento se deve em parte pelo “jabuti” inserido pelo Congresso na lei de privatização da Eletrobras (Lei 14.182), aprovada durante o governo anterior, em 2021, que estabelece a instalação de 8.000 megawatts em novas termelétricas a gás natural em quase todas as regiões do país, incluindo em áreas sem infraestrutura para o transporte e distribuição. A instalação desses empreendimentos está concentrada atualmente no estado do Amazonas, onde encontra-se o maior número de UTEs a gás planejadas, de acordo com dados da Aneel.
Pesquisadores da Coalizão Energia Limpa, grupo de organizações da sociedade civil que defende uma transição energética socialmente justa e sustentável no Brasil, calculam que a operação das “termelétricas jabutis” resultará na emissão de 20 milhões de toneladas de gás carbônico equivalente (Mt CO2e) por ano. Isso é praticamente o total de emissões de todo o setor de geração de eletricidade (serviço público, categorização dos dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa – SEEG) – 22 Mt CO2e – em 2022. Além disso, a conta de luz pode aumentar em mais de 12%, devido ao custo elevado das UTEs a gás.
Cássio Carvalho, doutorando em Energia na Universidade Federal do ABC (UFABC) e assessor político do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), uma das organizações que integra a coalizão, aponta outro problema que as UTEs a gás podem causar: a “disputa pela água”. O assessor explica que as termelétricas usam muita água para refrigerar o sistema de geração, o que pode comprometer a disponibilidade. “A população vai disputar a água para sua sobrevivência […] com uma termelétrica a gás natural”, afirma. Além disso as alterações climáticas têm impacto grande no ciclo hidrológico, sendo capazes de alterar a ocorrência e intensidade de chuvas em todo o país, inclusive resultando em períodos mais extensos de estiagem e seca de rios.
“Toda a cadeia do gás gera riscos socioambientais”, explica Ricardo Baitelo, doutor em planejamento energético pela Escola Politécnica da USP e gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), que também integra a Coalizão Energia Limpa. A extração do gás por fraturamento hidráulico e a construção da malha de gasodutos podem contaminar a água, induzir o desmatamento e poluir a atmosfera. Já a operação das termelétricas levanta preocupações sobretudo na Amazônia: as emissões fugitivas de combustíveis (escapes intencionais ou não de gases durante a exploração, transporte ou produção) podem impactar não só a saúde humana, como também a fauna e a flora. Para piorar, há poucas estações de medição e monitoramento da qualidade do ar em todo o país – principalmente na Região Norte.
A Usina Termelétrica Porto Sergipe I, em Sergipe, é a maior UTE a gás natural em capacidade instalada da América Latina, mas usinas maiores estão sendo construídas no Brasil. Foto: Arthuro Paganini / Governo do Estado de Sergipe.
Mais cara e mais poluidora
Enquanto uns argumentam que a expansão é um retrocesso, outros defendem e até exaltam o combustível fóssil. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE), por exemplo, órgão federal responsável pela elaboração do Plano Decenal de Expansão de Energia sob as diretrizes do Ministério de Minas e Energia, respondeu à reportagem da Ambiental por meio de um comunicado escrito – exaltando o papel do gás. “O gás natural tem importante papel na estratégia de transição energética do Brasil, pois a sua emissão é menor do que o diesel e o óleo combustível.”
Para Baitelo, do Iema, esse argumento é um contrassenso porque, embora o gás apresente um menor fator de emissão em comparação a outros combustíveis fósseis, como o carvão, é “uma fonte mais cara, mais poluidora, mais impactante” do que fontes renováveis que já estão em forte desenvolvimento no país. Aliás, o principal componente do gás natural é o metano, um dos gases do efeito estufa que mais contribuem para a crise climática.
Análises da própria EPE mostram que o aumento da participação de termelétricas a gás natural, como está previsto, resultará “em um maior custo de operação para o sistema”, além de um aumento projetado de 24% nas emissões do setor elétrico e 50% no setor energético ao longo do decênio, principalmente devido às atividades de exploração e produção de petróleo e gás.
Além disso, grande parte do país ainda não conta com a infraestrutura necessária para o transporte e a integração do gás na rede. “O setor do gás busca, com as termelétricas, fechar essa cadeia”, afirma Baitelo. “Ou seja, tendo a demanda, podem intensificar a infraestrutura de gás, que é um problema separado.”
Gestão eficaz, menores emissões
Outro argumento da EPE está baseado em uma ideia muito defendida pelo setor do gás: “É crucial ressaltar que a geração de eletricidade a partir do gás natural contribui para a segurança do sistema elétrico, especialmente diante do aumento da participação de fontes renováveis variáveis, como eólica e solar.”
Para Carvalho, do Inesc, essa alegação é equivocada porque uma gestão eficiente das fontes renováveis já protegeria o sistema elétrico. “Garantia física temos através das hidrelétricas e podemos fazer o que a gente chama de bateria do sistema – preservar a água nos reservatórios injetando energia através das fontes renováveis”, diz ele. “As térmicas que existem hoje, que fiquem em standby para que seja garantida a energia firme, se eventualmente precisarmos.”
O problema, entretanto, é que o sistema elétrico brasileiro ainda não faz uma gestão eficiente das múltiplas fontes de geração de energia, segundo Baitelo. “O que acontece hoje é o desperdício das fontes eólica e solar. O especialista ressalta que a matriz elétrica brasileira já tem ao menos três fontes protagonistas e não precisa de mais termelétricas. “Quando o Brasil tinha uma matriz hidrelétrica e não tinha opções eólicas e solares – estamos falando de 15 anos atrás – era crucial ter termelétricas prontas, emergenciais, que pudessem suprir o sistema se tivesse pouca chuva.”
O Brasil, segundo Baitelo, já caminha para uma matriz elétrica 100% renovável, devido ao “crescimento extraordinário de solar e eólica” nos últimos anos. “Temos uma tarefa mundial de sair dos combustíveis fósseis e a gente tem que se aprofundar nessa missão”, destaca. Atualmente, a matriz energética – conjunto de todos os recursos energéticos usados no país – é abastecida por 47% de fontes renováveis. Já a matriz elétrica – fontes usadas somente para a geração de energia elétrica – conta com a participação de 86% de renováveis.
Transição ou nova fronteira do petróleo?
Questionada pela reportagem, a EPE não mencionou a existência de propostas de redução ou eliminação da participação de combustíveis fósseis no planejamento energético atual. Entretanto, informou que o último Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE 2032) foi elaborado antes da troca de governo. “O PDE 2034, que está em fase de elaboração, terá um capítulo exclusivamente dedicado à transição energética que abordará as políticas públicas que contribuem para a transição energética do país, novas tecnologias e os desafios para que a transição ocorra de forma justa e inclusiva.”
Segundo Carvalho, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), o atual governo tem se mostrado disposto a apoiar a transição energética com ações como a reoneração dos impostos sobre os combustíveis fósseis e a criação de programas de incentivo a energias renováveis. Contudo, análises do próprio instituto sobre o planejamento orçamentário mostram que o Programa Transição Energética prevê um valor de R$ 937 milhões entre 2024 e 2027, o que representa apenas 0,2% dos recursos previstos para o Programa Petróleo, Gás, Derivados e Biocombustíveis (R$ 478 bilhões).
Carvalho observa ainda que o plano do Ministério de Minas e Energia de tornar o Brasil o quarto maior produtor de petróleo do mundo, intensificando a exploração e produção de petróleo e gás natural em território nacional, assim como a recente adesão à OPEP+, são indícios de que há uma movimentação no governo para perpetuar os combustíveis fósseis no país, além de uma forte influência da indústria fóssil nas políticas energéticas nacionais.
Vale destacar que a Secretaria Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis coordena o desenvolvimento dos planos de expansão de energia. Além disso, a Petrobras, empresa estatal de economia mista, é a proprietária do maior número de termelétricas a gás no país, de acordo com dados da Aneel.
Baitelo também conta de um “lobby bastante forte” pró-gás no Legislativo. “O Congresso tem sido uma força que não existia antes, uma força de poder e de incidência no planejamento energético”, afirma.
“Em foros internacionais, o Brasil vem se colocando como um protagonista na transição energética. No entanto, as políticas aqui mostram que não é bem assim”, diz Carvalho. “Um líder, um protagonista na transição energética, não pode apostar na exploração de novas reservas e em uma nova fronteira do petróleo e gás.”
Colaboraram nesta edição:
Infografia: Marina Martinez e Sofia Beiras
Edição: Fernanda Lourenço e Miguel Vilela
Foto da capa: Foto aérea do Pólo Industrial de Urucu – Pólo Arara. Divulgação Petrobras (2005).
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