Reportagem: Schirlei Alves
Estudos apontam redução do lençol freático e da vazão de rios após implementação de monocultura na Chapada das Veredas, no Alto Jequitinhonha, em Minas Gerais. Pequenos agricultores agora dependem de cisternas e caminhões-pipa e viram a diversidade alimentar minguar.
Enquanto internautas acompanhavam as trocas de farpas entre Luana Piovani e Neymar e tentavam entender o termo “privatização das praias”, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, sem alarde, uma outra lei que, na prática, facilita a “privatização da água” que corre em rios e no lençol freático em áreas destinadas à silvicultura – o cultivo de árvores para extração.
Ao excluir a silvicultura do rol de atividades potencialmente poluidoras, a Lei 14.876 simplifica o processo de licenciamento ambiental para o plantio de pinus, eucalipto e mognos para fins comerciais, como a fabricação de carvão vegetal, celulose e madeira. Além disso, a produção não estará mais sujeita ao pagamento da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental (TCFA).
Na região do Alto Jequitinhonha, em Minas Gerais – o estado que mais produz eucalipto no país – a escassez de água é uma realidade há décadas. Pequenos agricultores já conviveram com a fartura de água mesmo em períodos de seca, mas passaram a depender de cisternas e da água sem tratamento de caminhões-pipa. Além disso, viram a diversidade alimentar minguar.
“A plantação de eucalipto prejudicou em tudo. As nascentes foram diminuindo, diminuindo e muitas secaram. Chegou num ponto em que nós não tínhamos água nem para beber, nem para lavar roupa. Dependia só do caminhão-pipa”, conta a agricultora familiar Salete Cordeiro Maciel, 54 anos, que mora com o marido e um dos seis filhos na comunidade rural Gentio, em Turmalina.
No município, localizado em uma região conhecida como Chapada das Veredas, os impactados não são apenas os moradores da zona rural. A administração pública já precisou recorrer a um plano “B” para abastecer a população, e pior: não conta um plano “C”.
Estudos realizados pelo Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG) e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) relacionam a escassez hídrica à substituição da vegetação nativa do Cerrado pela monocultura de eucalipto. Os 23.840 mil hectares da Chapada das Veredas são ocupados em quase sua totalidade pelo plantio, o que significa que a área não dispõe mais de vegetação nativa e até mesmo a circulação dos moradores é limitada, por se tratarem de áreas privadas. A substituição do Cerrado pela monocultura de eucalipto começou na década de 1970, durante a Ditadura Militar.
Antes mesmo do hype da “privatização das praias”, pesquisadores de Minas Gerais já utilizavam o termo “privatização dos recursos naturais” para descrever a captura de recursos hídricos por grandes empresas. “Monopolizaram essas fontes que até então eram de uso comum, partilhadas por um conjunto de comunidades e famílias, e que se tornaram de uso privativo das empresas”, avalia a cientista social Flávia Maria Galizoni, professora do Instituto de Ciências Agrárias da UFMG.
50 anos depois, a mesma lógica
A Lei 14.876 aprovada em pleno 2024 pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 31 de maio, alterou a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981).
O texto, de autoria do senador Álvaro Dias (Podemos/PR), gerou divergência entre ambientalistas e grupos ligados ao agronegócio, mas foi aprovado em caráter de urgência na Câmara dos Deputados.
Em 17 de maio, o Instituto Socioambiental (ISA), o Observatório do Clima e a WWF Brasil chegaram a enviar um documento ao presidente Lula apontando inconstitucionalidades, os impactos que a silvicultura pode provocar e recomendando o veto. Para as organizações, é justamente o licenciamento ambiental que “mensura” esses impactos e exige “estudo prévio” para grandes empreendimentos.
“A atividade de silvicultura é potencialmente causadora de impactos como o exaurimento do solo, degradação da qualidade da água, desequilíbrio nas populações e redução de espécies da fauna e da flora, entre outros”, aponta o documento.
A sanção ocorreu cinco meses depois da 28ª Conferência do Clima das Nações Unidas (COP28), onde Lula ressaltou em discurso a importância do cuidado com a floresta, com as pessoas que moram na floresta e com a biodiversidade da floresta.
A nova lei suprimiu a expressão silvicultura da Política Nacional de Meio Ambiente, que, por sua vez, delega ao Ibama e ao ICMBio, órgãos federais, a tarefa de executar as políticas ambientais, incluindo licenciamento de atividades potencialmente poluidoras e aplicação da taxa de controle e fiscalização ambiental. O promotor Bruno Brandi, do Ministério Público de Minas Gerais, explica: “Isso não impede que as áreas de silvicultura sejam fiscalizadas por outros mecanismos legais e órgãos municipais e estaduais, mas enfraquece a proteção ambiental.”
Plantações de eucalipto no município de Itamarandiba, Minas Gerais. O cultivo de eucalipto no Vale do Jequitinhonha se intensificou a partir da década de 1970, incentivado pelo governo militar. Foto: Nilmar Lage / Agência Pública
Gestão do solo e da água
De acordo com o pesquisador Yuri Salmona, geógrafo e doutor em Ciências Florestais pela Universidade de Brasília, qualquer alteração de solo deve ser feita com muita cautela, uma vez que estamos em um processo de mudanças climáticas induzidas pelas ações humanas.
“Tem que se perguntar se a implementação de uma cultura em uma determinada bacia hidrográfica é uma atividade que vai aumentar nossa capacidade de ter resiliência hídrica ou vai diminuir”, argumenta Salmona, que também é diretor-executivo do Instituto Cerrados – organização com foco na conservação e uso sustentável do bioma. “Se diminuir, está dentro de uma margem segura frente às mudanças climáticas ou não? Toda e qualquer atividade que envolva consumo relevante de água deve se preocupar com esses pontos, no Cerrado isso é mais grave ainda.”
Salmona explica que a vegetação nativa do bioma se adapta ao clima sazonal, em que a chuva se concentra em apenas quatro meses – de novembro a março. “Entre algumas características, há a senescência, quando as folhas desidratam e diminui o consumo de água. Em alguns casos, elas até caem, o que causa a diminuição da evapotranspiração [perda de água do ecossistema para a atmosfera, causada pela evaporação a partir do solo e pela transpiração das plantas]. Isso faz com que essas plantas consigam se adaptar muito bem à sazonalidade do Cerrado e também desenvolver raízes profundas para coletar água no período seco”. Já o eucalipto, natural da Oceania, necessita de água o ano todo para o seu crescimento. Embora existam estudos contrapondo essa visão sobre a espécie, há muitas evidências científicas que apontam para o consumo significativo e preocupante de água nessas monoculturas. “Essas características do eucalipto precisam ser levadas em conta na gestão da água a fim de garantir disponibilidade hídrica para todos os usuários, prestigiando o consumo humano.”
Segundo o pesquisador Vico Mendes Pereira Lima, engenheiro agrícola e professor do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG), substituir a vegetação nativa por eucalipto provoca a quebra do ciclo hidrológico, ou seja, diminui a recarga e a capacidade de armazenamento de água no solo. “A vegetação nativa consegue aproveitar em torno de 50% de tudo aquilo que chove para abastecer as reservas de água no solo e os monocultivos de eucalipto só conseguem drenar cerca de 29%. Isso traz um déficit hídrico cumulativo”, explica.
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Lei na contramão das evidências científicas
De acordo com o relatório Projeto Salvaguardas Socioambientais Reduzindo os Impactos da Monocultura de Eucalipto, publicado em 2022, houve redução média de 10 centímetros na altura do lençol freático por ano nas áreas de monocultura de eucalipto no Alto Jequitinhonha. Levando em conta os 45 anos do monocultivo na região, a redução do lençol freático foi de 4,5 metros.
O relatório foi elaborado pelo Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), associação sem fins lucrativos voltada ao desenvolvimento da agricultura familiar na região, em parceria com o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), e contou com a participação 26 pesquisadores de diversas instituições, tais como Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG), Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Instituto Federal do Leste de Minas Gerais (IFLMG) e Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IFSMG).
Para Vico Mendes Pereira Lima, um dos autores da pesquisa, a nova lei é uma afronta ao meio ambiente no Brasil e ameaça o que resta dos biomas Cerrado e Mata Atlântica ao incentivar novos plantios. “Os monocultivos não são florestas, e as empresas exploram o fato de estarem plantando árvores para se intitularem reflorestadoras. As empresas são responsáveis pela supressão de milhões de hectares para implantação de monocultivos, muitas recebem incentivos oficiais para expropriar terras e águas de comunidades rurais e subtraíram das populações as dinâmicas das atividades agroextrativistas”, acrescenta Lima.
A Ambiental Media teve acesso com exclusividade a um estudo ainda não publicado, produzido pelo professor Vico Mendes Pereira Lima e outros pesquisadores do IFNMG e da UFMG, que aponta para a redução da vazão de rios após a implementação de monocultura de eucalipto nas chapadas do Alto Jequitinhonha.
Os pesquisadores analisaram o monitoramento do rio Araçuaí, localizado na região nordeste de Minas Gerais, e seus principais afluentes, Fanado e Itamarandiba, feito pela Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico (ANA), entre os anos de 1943 e 2019. O estudo verificou que a precipitação média anual e o escoamento base dos rios Araçuaí e Fanado sofreram redução significativa a partir da década de 1980. Nos anos 2000, a produção de água na bacia hidrográfica havia sofrido uma redução de 50% e, nas décadas seguintes, os rios apresentavam somente 10% da produção de água registrada anteriormente. A análise do rio Itamarandiba, porém, não foi tão precisa porque ali o monitoramento da ANA é mais recente e há poucos dados para uma análise histórica.
Segundo o pesquisador, ao observar o monitoramento histórico do rio Fanado, que nasce próximo ao município de Capelinha e percorre uma grande área coberta pelas monoculturas de eucalipto, é possível perceber o decaimento da vazão ao longo dos anos. De acordo com Lima, o rio já foi considerado perene, ou seja, que corre o ano todo, e chegou a ser responsável por abastecer vários municípios. Porém, ele se tornou intermitente: agora seu leito seca nos meses em que não chove no semiárido. “A gente acompanha tristemente a morte desse rio, devido a essas ações antrópicas que são intensivas na bacia hidrográfica dele”, diz Lima.
O pesquisador explica que há outras atividades agrícolas no Alto Jequitinhonha em pequena escala, como o plantio de café, mas a monocultura do eucalipto é predominante e traz consigo outras questões. “Eles inserem dentro das áreas de chapadas umas baterias enormes de fornos que emitem fumaça, utilizam muito agrotóxico, tem um trânsito intenso de máquinas agrícolas, de tratores, de caminhões. Isso agrega em impactos tanto ao ambiente hídrico, quanto ao solo, quanto à atmosfera nesta região.”
Autor de um estudo que apontou que o Cerrado pode ter uma redução de 34% da vazão dos rios até 2050, o pesquisador Yuri Salmona ressalta que dois elementos impactam a disponibilidade de água: as alterações do uso do solo, como as monoculturas, e as mudanças climáticas. “O norte de Minas é muito fortemente ocupado com silvicultura, plantação de espécies arbóreas para produção de celulose. Quando a gente pensa em uso do solo, esse é o principal elemento”, explica Salmona. “Mas não tem lugar onde não tenha clima, sendo assim, você tem elementos climáticos que agem naquela região, tem mudanças climáticas: diminuição do período de chuva, concentração das chuvas em um período mais curto, aumento do tempo da estiagem.”
Baterias de produção de carvão da Aperam BioEnergia. Desde a década de 1970, boa parte do carvão produzido na região é usado para abastecer a indústria siderúrgica. Foto: Nilmar Lage / Agência Pública
Os planos A, B e a ausência do C
O caso do município de Turmalina ajuda a entender como um conjunto de várias ações humanas, entre elas a má gestão dos recursos naturais, soma-se à monocultura para causar efeitos devastadores em rios e fontes de água. O vice-prefeito de Turmalina, Warlen Francisco da Silva (PT), assume que o abastecimento público na cidade pode ser comprometido. O município era abastecido pelo ribeirão Santo Antônio, que nascia na Chapada das Veredas e secou em 1996. A partir daí, a empresa municipal de água direcionou a captação para o rio Araçuaí, que é um dos mais próximos. Porém, segundo o monitoramento da ANA, ele também está perdendo vazão. Silva diz que não há alternativa caso o Araçuaí se torne intermitente.
“Hoje, o Araçuaí supre a necessidade, mas a própria Companhia de Saneamento de Minas Gerais relata que a vazão tem diminuído ano a ano. É uma preocupação, a médio prazo, que ele possa se tornar insuficiente”, avalia o vice-prefeito. “Não tem [um plano]. O outro rio mais próximo é o Jequitinhonha, mas já está há uma distância bem razoável. Seria um rio maior, onde tem a barragem Irapé, mas a gente não pode nem pensar nisso como alternativa, tem que tentar manter o que tem.”
Um levantamento feito pela Câmara de Vereadores de Turmalina em 2019, por meio de entrevistas com moradores, identificou que 89% das fontes de água secaram. Das 412 fontes que existiam nas comunidades estudadas, 368 não existem mais, restando apenas 48.
O relatório da Câmara indica como causas do problema a supressão de matas ciliares e vegetação no topo dos morros e ao redor das nascentes; acesso livre do gado ao barranco e aos leitos dos rios; plantio de eucalipto desrespeitando as veredas, nascentes e matas ciliares; e a construção de estradas rurais sem projeto de drenagem.
Escassez de água e de diversidade alimentar
Moradores entrevistados pela Ambiental dizem que tinham acesso a uma ampla variedade alimentar antes dos primeiros efeitos da escassez hídrica aparecerem. “Plantava arroz, ervilha, cenoura, beterraba, feijão-vagem, alface, almeirão, abóbora, maxixe. Plantava de tudo, era uma horta grande”, lembra Salete.
Eles dizem que hoje plantam uma menor diversidade de alimentos e em menor quantidade também. Os moradores comprometem com compras no mercado uma fatia maior da renda, formada pelo trabalho escasso na roça e por programas sociais de governo.
Flávia Maria Galizoni, cientista social e professora do Instituto de Ciências Agrárias da UFMG, ressalta que o ônus da monocultura recai sobre a população e, consequentemente, sobre o poder público. Sem água para produzir e consumir, os moradores da área rural dependem de políticas públicas que envolvem a construção de pequenas barragens e cisternas para armazenamento de água da chuva, caminhões-pipa e poços artesianos.
“Essas famílias, durante muito tempo, tiveram um dilema que a população urbana não sente, que é o de hierarquizar a água que elas têm: se vai usar para a casa, para o consumo humano, para uma pequena criação de gado ou para a horta”, diz Galizoni. “Elas precisam que essa água movimente a produção de alimentos, que é muito importante.”
Estudos produzidos com a participação de Galizoni identificaram que famílias agricultoras de Turmalina tiveram seus mananciais impactados pela monocultura de eucalipto e consequente privatização dos recursos naturais. As pesquisas expõem como as comunidades locais precisam se organizar para garantir outras formas de acesso à água. Os resultados também revelam como a escassez incide de maneiras desiguais sobre diferentes grupos sociais.
O eucalipto pelo Brasil
De acordo com o Censo Agropecuário, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Minas Gerais é o estado brasileiro com a maior área ocupada pela cultura de eucalipto, permanecendo no topo do ranking em todos os anos com dados disponíveis (de 2013 a 2022).
Em 2022, havia pouco mais de 2 milhões de hectares de eucalipto plantado em Minas, o que corresponde a 28% da área total no Brasil (7,3 mi). As regiões com as maiores áreas são o Sudeste, com 45% do total, e o Centro-Oeste, com 20%.
Os municípios mais afetados pela monocultura de eucalipto no Alto Jequitinhonha são Turmalina, Minas Novas, Capelinha, Veredinha, Itamarandiba e Carbonita.
Segundo pesquisa do Polo Jequitinhonha da UFMG, a palavra Jequitinhonha – que batiza o vale – corresponde a “rio largo e cheio de peixes” no dialeto dos indígenas maxacalis. Neste lugar, dona Salete vivia décadas atrás, antes de sentir o impacto da escassez hídrica. “Muitas famílias sobreviviam pescando lá na Chapada das Veredas e levando os peixes para a feira. Eu comi muito peixe de lá”, lembra.
José Carlos Xavier dos Santos, 43 anos, morador da comunidade Campo Alegre, também em Turmalina, ressalta que, para além dos peixes, a Chapada das Veredas era um espaço comum a todos os moradores, onde colhiam frutas nativas e soltavam seus gados.
“Hoje, no lugar onde você nasceu e se criou, se sente tipo preso. Porque, antigamente, a gente circulava lá na Chapada e coletava muitas frutas. A gente pegava a jaca, o pequi, a cagaita, o gravatá, o jatobá”, conta dos Santos. “Meu pai vendia a jaca em Água Boa, Santa Maria, montado nos animais, e trazia café que aqui não tinha. Só que eles [empresas responsáveis pela monocultura de eucalipto] quebraram a chapada.”
Plantações na região do município de Itamarandiba, Minas Gerais. No canto inferior esquerdo desta foto pode-se ver o aterro ilegal, com cerca de 200 metros quadrados, de Aldrin, um agrotóxico altamente tóxico, banido em vários países, inclusive no Brasil. Foto: Nilmar Lage / Agência Pública
Monocultivo e contaminação coletiva
O engenheiro agrônomo Renato Alves de Souza, do CAV, acrescenta mais uma preocupação ao cultivo de um único produto agrícola: o uso de agrotóxicos. “Uma das características do monocultivo é que, se aparecer alguma praga, ela se espalha muito rapidamente, e no caso do eucalipto, têm surgido algumas pragas recentes e tem intensificado a aplicação de agrotóxicos”, explica.
Em 2017, o Ministério Público investigou a Aperam BioEnergia, uma das maiores empresas envolvidas nas plantações de eucalipto do Alto Jequitinhonha. Na época, foi descoberto um aterro em uma de suas propriedades com depósito ilegal de Aldrin, um agrotóxico altamente tóxico, banido em vários países, inclusive no Brasil.
Em caráter liminar, a Justiça mineira determinou, entre outras medidas, que a empresa depositasse judicialmente, a título de indenização/compensação ambiental preliminar, a quantia de R$ 1,5 milhão. Segundo o Ministério Público, no entanto, os efeitos da liminar foram derrubados pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no julgamento do agravo de instrumento interposto pela Aperam. O processo encontra-se em fase de produção de provas.
O aterramento do produto causou contaminação do solo, da água, e das pessoas e animais que ficaram expostos, diz o relatório do CAV.
O Ministério Público de Minas Gerais instaurou um procedimento administrativo para apurar a missão dos poderes estadual e municipal em atuar na proteção ambiental dos recursos hídricos no Alto Jequitinhonha.
“O Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), o órgão responsável pela microbacia JQ2, que é a área específica da região de Turmalina, tem sido pouco frequente na fiscalização da área. Se, de um lado, os municípios possuem uma estrutura muito pequena direcionada à proteção ambiental, do outro, o Estado de Minas Gerais não tem feito o seu papel na aplicação desses estudos ou o aprofundamento dessas investigações para que a gente possa falar minimamente em uma responsabilização neste momento”, pondera o promotor Bruno Brandi.
O que dizem a empresa e o governo de Minas
A Aperam BioEnergia afirma, em resposta à Ambiental Media, que “a tese de que o eucalipto empobrece o solo e seca as nascentes” não é verdadeira e que há muita “desinformação sobre essa cultura”.
“Como qualquer outra árvore, o eucalipto precisa de água para seu desenvolvimento e manutenção. Mas, assim como as raízes de outras culturas agrícolas, o eucalipto absorve a água das camadas mais superficiais do solo”, afirma em nota. A mesma nota cita ainda um texto publicado pela Embrapa, com perguntas e respostas sobre a monocultura de eucalipto.
A empresa também afirma que “segue rigorosamente os princípios de sustentabilidade no uso dos recursos hídricos”, que “todas as intervenções hídricas são realizadas em barramentos próprios que acumulam água de chuva, na qual possuem outorgas válidas e são submetidas a um rigoroso processo de monitoramento, assegurando a conformidade com todos os requisitos legais” e que “não realiza captação de água em nenhum rio, incluindo o rio Araçuaí”.
“As principais ações da Aperam BioEnergia na gestão dos recursos hídricos incluem o plantio de mudas realizado somente no período chuvoso, construção de caixas de contenção nas florestas, contribuindo para a infiltração de água das chuvas no solo e evitando erosões nas estradas, a construção de piscinões para acúmulo de água da chuva e utilização nos processos, recirculação e otimização de água no viveiro de mudas, além do desenvolvimento de cursos de capacitação com parceiros para construção de fossas sépticas nas comunidades.”
Sobre o aterro de embalagens de agrotóxicos, a Aperam afirma que assumiu a área que pertencia a uma empresa chamada Acesita, que utilizava o pesticida Aldrin para controle de pragas, mas que interrompeu o uso antes da proibição pelas autoridades. De acordo com a Aperam, “uma pequena quantidade de embalagens usadas” foi encontrada em uma de suas propriedades. A empresa afirma que as medidas esperadas foram tomadas e que iniciou o processo de remediação de áreas contaminadas, que atualmente está em sua fase final.
A Aperam recorreu da multa aplicada pela Fundação Estadual do Meio Ambiente e afirma aguardar um resultado favorável por entender pela ausência de sua responsabilidade, somada à adoção das medidas necessárias.
Ainda segundo a Aperam, a Acesita era uma empresa estatal, sob propriedade e gestão pública, que foi privatizada em um leilão público em 1992. Seis anos depois, ocorreu a internacionalização, com a entrada do grupo siderúrgico Usinor (Francês) no quadro de acionistas. Após várias reorganizações societárias, a antiga Acesita passou a se chamar Aperam Inox America do Sul SA, sócia e controladora da Aperam BioEnergia Ltda.
A Associação Mineira da Indústria Florestal (AMIF), que faz parte do Conselho da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ) e representa as 25 maiores empresas de base florestal em Minas Gerais, disse em nota que o setor conserva mais de 1,3 milhão de hectares de vegetação nativa.
“A agroindústria que representamos não promove o uso alternativo do solo no sentido de substituir o Cerrado primário por floresta plantada. Esta alteração de uso de solo não é recomendada pelas atuais práticas de manejo sustentável, inclusive é notório que MG possui uma extensa área antropizada e de baixa produtividade, que são os locais determinados pelo setor para sua ampliação”, declarou a associação.
Sobre o uso da água pelas árvores, a AMIF afirma que se trata de processo fisiológico, independe se a espécie plantada é nativa ou não ao bioma em que se encontra, se cresce para fins comerciais ou de conservação.
“As árvores captam água para seu crescimento e devolvem parte dela para a atmosfera, na forma de vapor d’água. As espécies arbóreas, todas, consomem água de forma diferente de espécies arbustivas, gramíneas, pelo seu próprio porte e em qualquer estudo científico rastreável estes perfis distintos são apresentados. Mas vale ressaltar que o crescimento e manutenção de florestas, independente da finalidade, não é fisiologicamente uma atividade de consumo não devolutivo de água, as florestas são parte relevante ao ciclo hidrológico.”
Com relação à regularidade das fiscalizações, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), pasta à qual está vinculado o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), informa que no Sistema de Fiscalização (SISFIS) consta que entre janeiro de 2023 e junho de 2024 foram realizadas 519 fiscalizações relacionadas a recursos hídricos nos municípios do Vale do Jequitinhonha. Foram identificadas 141 infrações relacionadas ao código 201 – derivar, utilizar ou intervir em recursos hídricos, nos casos de usos insignificantes definidos em normativa, sem o respectivo cadastro ou em desconformidade com a autorização. Com relação ao município de Turmalina, foram realizadas 13 fiscalizações, sendo identificadas 5 infrações.
O governo de Minas afirma que “desenvolve um conjunto de medidas para garantir a segurança hídrica a todos os mineiros, incluindo a preservação de conjuntos aquíferos e das florestas, essenciais para a manutenção da qualidade da água”. O Estado destaca algumas ações, porém não se pronuncia sobre a Chapada das Veredas, no Alto Jequitinhonha.
Para o governo mineiro, a silvicultura é uma atividade agrícola que está diretamente ligada ao desenvolvimento econômico, gerando emprego e renda principalmente no interior do estado. Além disso, essa prática pode contribuir para a conservação do solo e da qualidade da água.
Até a publicação da reportagem, o Ministério do Meio Ambiente não tinha enviado posicionamento sobre a Lei 14.876, que simplifica o processo de licenciamento ambiental para a silvicultura. Assim que enviada, esta reportagem será atualizada pela nossa equipe.
(Correção: esta reportagem errou ao informar que o vice-prefeito de Turmalina, Warlen Francisco da Silva, é do PL. Na verdade, Silva está filiado ao PT. A informação foi corrigida às 20h02 de 01/07/2024.)
Este conteúdo faz parte de uma série de reportagens sobre o Cerrado produzida pela Ambiental Media em parceria com o Instituto Serrapilheira e o Climate and Land Use Alliance. Uma plataforma especial está em fase de desenvolvimento, e incluirá análises e visualizações de dados sobre os impactos das ações humanas nos principais rios da savana mais biodiversa do planeta.
As fotos desta reportagem foram cedidas pela Agência Pública, que publicou reportagem sobre a região em 2020. O uso das imagens por terceiros não é permitido.
Colaboraram nesta edição:
Edição: Fernanda Lourenço, Miguel Vilela e Thiago Medaglia.
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