A pesca está em crise na bacia mais biodiversa da Amazônia

Kevin Damasio

Kevin Damasio

Jornalista focado em temas socioambientais e científicos

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Fotos de Bruno Kelly, do rio Madeira, Amazonas

Pescadores e cientistas relacionam a escassez de peixes à construção de hidrelétricas no rio Madeira, em Rondônia, e a outros fatores, como a crise climática. Comunidades agora convivem com a insegurança alimentar e financeira.

Uma reclamação tem ecoado nas conversas com moradores de municípios do Sul do Amazonas às margens do rio Madeira: o declínio dos estoques pesqueiros. Habituados à fartura da bacia com a maior biodiversidade de peixes da Amazônia, os ribeirinhos testemunham há uma década a escassez de peixes, que tem levado à insegurança alimentar e financeira.

A Ambiental Media acompanhou uma expedição científica pelo rio em parceria com a Mongabay. Em Humaitá, Manicoré e Novo Aripuanã, nossa reportagem ouviu relatos de pescadores que mal conseguem suprir a demanda dos cidadãos locais por peixes frescos – em torno de 100 toneladas por ano em cada cidade. Na percepção deles, os problemas começaram após a construção de duas hidrelétricas no Madeira e são intensificados pela crise climática – se a seca histórica de 2023 afetou intensamente a vida dos ribeirinhos do Madeira, um novo verão amazônico de poucas chuvas se desenha para este ano e gera temor das populações locais. Cientistas ouvidos pela reportagem sustentam essa afirmação, com evidências de distúrbios no ciclo hidrológico que se somam a outros impactos humanos, como desmatamento e garimpo ilegal.

Redes em espera

Numa alvorada de abril, 20 pescadores receberam a informação de que um cardume de matrinxãs descia o rio Aripuanã rumo ao Madeira, o maior tributário da Bacia Amazônica. Era a oportunidade de interromper uma semana de pesca improdutiva que castigava a atividade em Novo Aripuanã, município do sul do estado do Amazonas, no Norte do Brasil. Então, eles se dividiram em três canoas de madeira e seguiram para o rio. Restava aguardar a passagem dos peixes, que nadam na superfície, e lançar a rede.

Às 11 horas, sem sinal das matrinxãs, metade deles desistiu e, na canoa maior, retornou à cidade. Um pescador observava tudo de uma ponta de terra no encontro das águas brancas e pretas no Médio Madeira, enquanto, logo à frente, diversos botos-vermelhos e tucuxis emergiam para respirar e caçar peixes. “Talvez o cardume nem chegue para cá, porque o rio está muito seco”, acredita Raimundo Dias. 

Naquela época, a bacia do Madeira passava pela transição da cheia para a vazante. Com o nível ainda alto, os peixes se agrupam em cardumes e migram dos lagos, rios e igarapés para se alimentar de frutas, sementes e invertebrados terrestres que caem nas florestas alagadas – os igapós – e nas várzeas do Madeira.

A usina de Santo Antônio, em Porto Velho, entrou em operação em março de 2012 e é a quinta hidrelétrica com maior potência instalada no Brasil (3.750 megawatts). A de Jirau, instalada 115 quilômetros rio acima, opera desde setembro de 2013 e é a quarta maior do país (3.568 MW).

Nascido e criado em Novo Aripuanã, Dias tem 50 anos e sempre viveu da pesca, mas conta que tirar o sustento dessa atividade está cada vez mais difícil, devido à escassez de peixe nesta que é a bacia com a ictiofauna mais diversa da Amazônia – 1.406 espécies já foram registradas. “Era muita fartura, não tinha como não pegar peixe aqui. De dez anos para cá, a pesca caiu. Essa hidrelétrica acabou com a gente”, se queixa o pescador.

De acordo com Dias, as espécies mais afetadas são as mais consumidas localmente: pacu, aracu, sardinha, matrinxã e jaraqui. Sumiram também peixes de alto valor comercializados para grandes cidades, como os bagres migradores dourada e piramutaba.

A escassez impacta não apenas o comércio, mas a dieta dos cidadãos de Novo Aripuanã. O peixe, que é a principal proteína dos ribeirinhos da Amazônia, encareceu nos mercados e restaurantes. “A gente vendia um punhado de matrinxãs a R$ 5. Agora, chega a custar R$ 40”, diz Dias.

Retrato de um homem de camisa vermelha, calca jeans, boné azul, em pé na proa de um barco de madeira.

José Pessoa (à esquerda), 58 anos, de Humaitá, pesca desde os 13 e chama atenção para o impacto da seca na quantidade de peixes – em outubro de 2023, o Madeira em Porto Velho (RO) atingiu 1,1 m de profundidade, o menor nível da história. “Esse ano, com a enchente pouca, não vai ter, porque não tem água para [o peixe] viajar.” Foto: Bruno Kelly / Ambiental Media / Mongabay

Retrato de um homem de camisa regata branca, shorts azul, sentado na ponta da proa de um barco de madeira.

Na comunidade do Paraisinho, em Humaitá (AM), a pesca se tornou “quase inexistente”, diz João Mendonça, 50 anos, presidente da associação de agricultores e pescadores local. “O período que era para estar secando está enchendo. Quando era para estar enchendo está secando. Os peixes ficam descontrolados.” Foto: Bruno Kelly / Ambiental Media / Mongabay

Fluxo desordenado

Em Humaitá, município do Amazonas na divisa com Rondônia, a produtividade da pesca tem forte influência da sazonalidade. Conforme o rio seca, muitas espécies vêm do Baixo Amazonas, entram no Madeira pela foz e sobem o rio de águas brancas, onde se reproduzem.

Na visão do pescador José Pessoa, 58 anos, essa migração foi prejudicada porque o rio perdeu correntezas depois das barragens. “O peixe requer corredeira para fazer a piracema. Se não tem no Madeira, ele pega o Amazonas, sobe o Solimões e vai embora. Aqui nós ficamos sem nada”, analisa Pessoa, que pesca desde os 13 anos.

“O peixe que a gente consegue por aqui é quando dá uma água um pouco mais alta, que o peixe sai de um lago, viaja para outro e vai subindo [o Madeira]”, continua Pessoa. “Esse ano, com a enchente pouca, não vai ter, porque não tem água para ele viajar.”

A pesca artesanal dos ribeirinhos também é afetada pela crise climática, que potencializa fenômenos meteorológicos. O Madeira sofreu em outubro de 2023 a pior seca da sua história, quando chegou a 1,11 metro de profundidade em Porto Velho, sob influência do aquecimento dos oceanos Pacífico Equatorial (El Niño) e do Atlântico Norte Tropical. Em 29 de julho, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) declarou “situação de escassez quantitativa de recursos hídricos nos rios Madeira e Purus e seus afluentes até 30 de novembro”, resultado da precipitação abaixo da média no período chuvoso, de novembro a  abril. O objetivo da declaração é estimular a adoção de “medidas preventivas para mitigar os impactos nos diversos usos da água”.

Retrato de um homem vestindo uma camisa regata vermelha, olhando para câmera em frente a uma banca de mercado de alvenaria com paredes verdes e desenhos de peixes.

Ancelmo Barros de Menezes, 59, retratado no Mercado Municipal de Manicoré, também reclama da escassez de peixes na região. “Era matrinxã, era tudo. Agora, não. O senhor está vendo, só esse peixe aí”, diz ele, apontando para uma caixa com jaraquis de cerca de 20 cm. Foto: Bruno Kelly / Ambiental Media / Mongabay

Na comunidade do Paraisinho, a 10 quilômetros de Humaitá, a pesca se tornou “quase inexistente”, diz João Mendonça, 50 anos, presidente da associação de agricultores local, que também representa os pescadores. A comunidade está se mantendo graças à agricultura de várzea, cuja produção é adquirida por programas governamentais de alimentação.

“O período que era para estar secando está enchendo. Quando era para estar enchendo está secando. Os peixes ficam descontrolados. Não fazem a sua piracema na época certa”, diz Mendonça. “Hoje, as pessoas vêm comprar o frango [na cidade], porque está difícil de pegar o peixe na comunidade, tanto no lago como na margem dos rios.”

As usinas adotam o modelo fio d’água, que represa menos água do que o de reservatório, mas ainda assim afetaram a hidrologia do Madeira. Após analisar dados de vazão de três estações de monitoramento de 2006 a 2018, cientistas concluíram que “as operações das usinas aumentaram significativamente a variabilidade do fluxo diário e subdiário”.

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Repiquetes são mudanças bruscas de um período de cheia para um de seca, ou vice-versa, em dois dias consecutivos. Esse evento quase dobrou (94%) na estação de Porto Velho, 5 quilômetros a jusante da Usina de Santo Antônio. Já na de Humaitá, a 255 quilômetros dessa hidrelétrica, a alta foi menor (13%), mas “ainda assim significativa”. Os pesquisadores atribuem esse aumento às flutuações na demanda energética.

“Os picos hídricos diários são muito frequentes em função da hidrelétrica, porque ela controla a quantidade de água que retém e libera”, observa a bióloga Carolina Doria, coordenadora do Laboratório de Ictiologia e Pesca da Universidade Federal de Rondônia, e coautora do artigo. “Essa variação abrupta no mesmo dia tem um impacto muito grande.”

O peixe sabe que precisa sair da mata ciliar, das florestas alagadas e dos lagos e nadar até o rio principal, quando o nível da água passa a subir diária e paulatinamente, explica a bióloga. “Se começa o sobe e desce, sobe e desce [do nível do rio], o peixe nem sai do tributário. Ele fica perdido. Fisiologicamente há um descontrole.”

Foto aérea mostra a usina hidrelétrica de Santo Antônio em funcionamento.
Foto aérea mostra a usina hidrelétrica de Jirau em funcionamento.

A usina de Santo Antônio (à esquerda), em Porto Velho, entrou em operação em março de 2012 e é a quinta hidrelétrica com maior potência instalada no Brasil (3.750 megawatts). A de Jirau (à direita), instalada 115 quilômetros rio acima, opera desde setembro de 2013 e é a quarta maior do país (3.568 MW). A construção das usinas alterou o ritmo natural de cheias e enchentes do rio Madeira, o que levou à redução do estoque e diversidade de peixes, apontam cientistas e pescadores. Fotos: Divulgação/Programa de Aceleração do Crescimento

Barreiras para a ictiofauna

João Mendonça, do Paraisinho, diz que no Madeira havia um período certo para pescar. “Os peixes que a gente mais esperava na cheia eram o jaraqui e a matrinxã. Na seca, era o pintado, o pacu e a curimatã”, conta. “Esses peixes davam em grande quantidade. Hoje, você não pode contar com isso.”

A dinâmica dos peixes está muito ligada à disponibilidade de água na bacia, diz Marcelo dos Anjos, coordenador do Laboratório de Ictiologia e Ordenamento Pesqueiro do Vale do Rio Madeira, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Além das migrações sazonais, o biólogo destaca as movimentações laterais para fins de alimentação, nas quais os peixes aproveitam chuvas repentinas que alagam as várzeas.

“As espécies não deixaram de ocorrer ali por uma preferência de ambiente, mas porque elas não têm mais acesso. A fragmentação de habitats tem levado ao declínio das populações de peixes”, considera Anjos. Ele atribui essa perda de conectividade a um conjunto de fatores: as hidrelétricas, o desmatamento, o assoreamento do rio influenciado pelo garimpo de ouro, a criação de assentamentos e a expansão da fronteira agrícola.

Samuel de Moraes, presidente da Colônia de Pescadores Z-31, de Humaitá, considera que o ribeirinho do Madeira não consegue mais se planejar de acordo com as dinâmicas naturais do ambiente. “Se estiver secando na Lua Nova conseguimos ter uma produção boa, porque o peixe sai dos lagos para se reproduzir”, conta Moraes. “Agora temos a Lua Nova. Era para estar secando, mas está enchendo.”

Moraes notou mudanças no comportamento dos peixes que vivem nos afluentes e lagos do Madeira. “O peixe do lago Puruzinho, uns 4 quilômetros daqui para baixo, vem desovar num pedral bem perto do rio Madeira. Hoje, ele sai, fica no máximo um dia próximo do igarapé e volta para dentro”, observa o pescador. “Essa água ficou sem qualidade para o peixe, que hoje não fica no rio Madeira.”

Em março de 2024, pesquisadores da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) lançaram o primeiro Índice de Qualidade da Água (IQA) para a Bacia Amazônica, destinado a rios de águas pretas. O índice foi criado a partir dos dados de uma expedição pelo rio Negro, acompanhada pela Ambiental Media. Em abril, o grupo navegou pelo rio Madeira para  desenvolver o primeiro IQA para um rio de águas brancas da Amazônia – a Ambiental acompanhou ambas expedições. 

“Mudanças drásticas nas concentrações de oxigênio dissolvido, pH, condutividade elétrica e nutrientes podem acarretar em um desequilíbrio ecológico, fazendo com que muitas espécies não suportem tais alterações”, explica Adriano Nobre, biólogo e coordenador de campo e laboratório das expedições.

Somente no Madeira, o barco-laboratório da UEA percorreu quase 800 quilômetros. Em julho, os cientistas ainda analisavam os dados coletados, mas o biólogo adianta: “Verificamos oscilações do pH, turbidez e condutividade elétrica em pontos próximos de balsas e dragas de garimpo ativo”.

Gráficos mostram a correlação entre o aumento da variabilidade da vazão e do nível do rio Madeira depois da usina de Jirau com a mudança na demanda por energia na região Norte.
Gráficos mostram a correlação entre o aumento da variabilidade da vazão e do nível do rio Madeira depois da usina de Jirau com a mudança na demanda por energia na região Norte.

“Os picos hídricos diários são muito frequentes em função da hidrelétrica, porque ela controla a quantidade de água que retém e libera”, observa a bióloga Carolina Doria, coordenadora do Laboratório de Ictiologia e Pesca da Universidade Federal de Rondônia, e coautora do artigo. “Essa variação abrupta no mesmo dia tem um impacto muito grande.” Gráfico: Rodolfo Almeida / Ambiental Media

A pesca em crise

No Mercado Municipal de Humaitá, Osvaldo de Araújo limpa branquinhas em sua banca enquanto recorda quando pescava na lagoa Três Casas, a 45 quilômetros da cidade. “Era peixe que não dava conta. Pegava a qualidade que queria”, lembra o peixeiro de 63 anos.

Araújo conta que tirava até 500 quilos em um período de cinco dias, mas agora o pescador leva pelo menos 10 dias para conseguir 100 quilos. “O que mais está sumido é peixe liso – pacu, jatuarana, sardinha. Eram os peixes da tradição daqui”, observa Araújo. “Nesse mercado, se não tivesse um peixe de viveiro, essas bancas estariam secas.”

Em outra bancada, tambaquis gordos se empilham em uma caixa de plástico. “O tambaqui na época era um peixe mais fino. Nem todo mundo tinha condição de consumir”, conta o peixeiro José Alvinei. “Depois da barragem, o peixe ficou mais escasso e todos encareceram – jaraqui, curimatã. Como o tambaqui de viveiro chega em grande quantidade, ficou mais barato e acessível.”

Houve redução de 39% na média anual do pescado que chega à colônia de Humaitá em relação aos períodos antes (2002-2010) e (2012-2016) depois das barragens – de 267 para 163 toneladas. As mais impactadas foram branquinha, pirapitinga, tucunaré, curimatã, jaraqui e pacu. “Essas espécies são amplamente utilizadas na culinária tradicional, principalmente entre os ribeirinhos, além de representarem grande parte do esforço de pesca dessa população para o comércio regional”, analisa o biólogo Rogério Fonseca, coautor do artigo e coordenador do Laboratório de Interações Fauna e Floresta, da Ufam.

Foto mostra uma banca de peixe fechada, com um gato no centro da imagem, sobre um balcão de azulejos brancos, olhando a câmera. Na parede, há ilustrações de peixes tucunaré, jaraqui e pacu.
Foto mostra peixes tambaqui dispostos sobre uma bancada de azulejo branco de uma banca de peixe do mercado municipal. Ao fundo vê-se outras bancas, algumas vazias, pessoas e uma balança analógica vermelha.

Bancas de peixe no Mercado Municipal de Borba (AM). Segundo o peixeiro José Alvinei, antes das barragens o tambaqui, como estes dispostos no balcão, era um peixe mais caro, poucos consumiam. “Depois da barragem, o peixe ficou mais escasso e todos encareceram – jaraqui, curimatã”, diz ele. “Como o tambaqui de viveiro chega em grande quantidade, ficou mais barato e acessível.” Foto: Bruno Kelly / Ambiental Media / Mongabay

No período analisado, os anos mais produtivos aconteceram antes de as hidrelétricas entrarem em operação: 2002 (294 toneladas), 2006 (350) e 2011 (407). Já os que renderam menos se deram após as barragens: 2014 (158), 2015 (94) e 2017 (101).“Hoje, não estamos chegando mais a 100 toneladas”, diz Moraes.

Na colônia de Humaitá há cerca de 3,7 mil pescadores associados, dos quais 1,4 mil são registrados no Ministério da Pesca. Os cientistas estimam que “o declínio da produção pesqueira em Humaitá representa uma perda média de aproximadamente R$ 1,9 milhão de renda por ano”.

Já um estudo de dezembro de 2023, do qual Anjos e Doria são coautores, constatou que pontos tradicionais de pesca se tornaram improdutivos – os lagos do Antônio, Trapicho e Caiarí, e as comunidades Sossego e Santa Júlia. Há também locais com forte redução na produtividade. No igarapé Beem, anteriormente o principal ponto, a pesca caiu de 164 toneladas para 1,3. Na lagoa Três Casas, reduziu de 4,2 para 2,8 toneladas.

Com isso, os pescadores precisam se deslocar para lugares mais distantes – o estudo identificou 25 novos locais de pesca que passaram a ser utilizados após as hidrelétricas. No rio Marmelo, onde não eram registradas capturas das seis espécies monitoradas, agora é o local com a maior produção (6,7 toneladas).

A cada saída de pesca, os ribeirinhos adquirem combustível, gelo, contratam pessoal e compram alimento para o tempo no rio. “Para longe não compensa ir. Hoje, uma despesa numa canoa para ir num lago é 500, 600 reais. Se você for e não trouxer o peixe para cobrir, não dá mais para ir de novo”, observa Araújo.

A partir de 2013, mais de 1,5 mil pescadores de Humaitá entraram na Justiça contra as empresas administradoras das hidrelétricas, com base em estudos que atribuem às usinas os impactos nos peixes e na pesca. As ações reivindicam dano moral e material.

Em fevereiro de 2023, o juiz da 2ª Vara da Comarca de Humaitá, Charles José Fernandes da Cruz, analisou a ação de uma pescadora que reivindicava um salário mínimo mensal e dano material. De acordo com o processo, as reivindicações “são provenientes de supostos danos que tiveram seu desencadeamento em julho de 2007, com o início da construção da Usina de Santo Antônio e Jirau”. O magistrado decidiu que a ação havia prescrito porque já se passaram mais de três anos. A sentença se estendeu para os demais processos dos pescadores, por terem o mesmo teor.

Os pescadores recorreram e os processos agora estão no Tribunal de Justiça do Amazonas, que julgará sobre a prescrição. Se a decisão for derrubada, terá início a fase de perícia com análises individuais de cada pescador, para verificar o direito à compensação.

Foto aérea mostra duas canoas, uma maior com sete pescadores (um dormindo com chapéu na cabeça) e outra menor com uma rede de pesca vazia.

No Novo Aripuanã, um afluente do Madeira, pescadores esperam, sem sucesso, por um cardume de matrinxãs avistado rio acima. Lideranças do município de mesmo nome pedem uma compensação financeira pela crise da pesca, em forma de royalties pela energia ou um fundo de amparo. Foto: Bruno Kelly / Ambiental Media / Mongabay

Desistência da pesca

Numa tarde de sexta-feira, muitas caixas de jaraquis chegam ao Mercado Municipal de Manicoré, município a 355 quilômetros de Humaitá. “Esse ano a gente esperava uma pescaria melhor. Agora que está chegando esse peixe”, diz Ancelmo de Menezes, pescador de 59 anos. Ele observa que antes das hidrelétricas dava peixe em maior quantidade. “Era matrinxã, era tudo. Agora, não. O senhor está vendo, só esse peixe aí.”

“A queda foi imensa. As espécies de pescado mais abundantes ficaram muito escassas. Foi um negócio espantoso aqui na região”, diz Antônio Veiga, presidente da Colônia de Pescadores Z-20, de Manicoré. Para ele, a redução só não foi maior porque Manicoré é rodeada por cinco grandes afluentes do Madeira, onde há lagos com boa produtividade. “Ainda temos muita matrinxã, jaraqui, sardinha, pacu. De vez em quando aparece tucunaré, tambaqui.”

Segundo Veiga, que está há 25 anos na presidência da colônia Z-20, não houve nenhuma audiência ou consulta pública às cidades do Amazonas no Baixo e Médio Madeira. “Não tivemos o conhecimento de nada que poderia trazer de bom ou ruim para nosso município. Elas foram instaladas em Rondônia, mas o impacto veio para o Amazonas”, diz.

“Em outros tempos, quando não existia a hidrelétrica, em outubro começava a bater o repiquete e a gente sabia qual seria o impacto no rio Madeira. Hoje, é tudo incerto”, continua Veiga. “Ninguém mais tem controle da situação. O pescador não sabe mais quando a água vem, quando vai, como as margens do rio ficam.”

Em Manicoré, os impactos no rio e nos peixes fizeram com que muitos pescadores migrassem para outras atividades, diante das condições “muito precárias”. Alguns apostaram no garimpo de ouro ilegal, que também causou muito dano ao rio, diz Veiga, mas tem perdido força com operações da Polícia Federal no Madeira. Em setembro de 2023, agentes federais destruíram 302 balsas de garimpo espalhadas de Manicoré a Autazes. Em maio, inutilizaram 86 embarcações na região de Humaitá.

“Gerações de pescadores estão sendo obrigadas a mudar de atividade. O garimpo está ali na porta da casa deles, o desmatamento. Atividades ilegais estão sendo empurradas para essas pessoas, que hoje estão se vendo sem oportunidade”, alerta Rogério Fonseca, da Ufam. 

Em um estudo em andamento que analisa a extensão dos impactos à pesca de Guajará-Mirim, no Alto Madeira, até Borba, no início da região da foz, Fonseca identificou que “o problema está acompanhando o fluxo do rio”: “Na cidade de Manicoré isso está latente. A gente já consegue perceber os mesmos impactos que acontecem em Guajará-Mirim e Humaitá”.

Foto aérea mostra um rio largo, de águas amarronzadas, com uma fileira de balsas de garimpo no primeiro plano, e um barco branco de médio porte à esquerda. As duas margens estão cobertas por vegetação exuberante, com árvores altas.

O barco de pesquisa (branco, à esquerda), onde repórter e fotógrafo estavam embarcados, passa ao lado de uma fileira de balsas de garimpo ilegais, conhecidas como fofocas, no rio Madeira, próximo ao município de Novo Aripuanã (AM). Pesquisadores temem que a falta de peixes empurre pescadores para atividades ilegais, como o garimpo. Foto: Bruno Kelly / Ambiental Media / Mongabay

Um futuro extremo

No final de junho, os pescadores de Novo Aripuanã ainda estranhavam a ausência dos cardumes de matrinxã. “Até agora não deu. Estamos esperando para ver se dá em julho”, diz Allan de Barros, presidente da Colônia de Pescadores Z-29. Este é um exemplo da incerteza da atividade pesqueira causada pelo desequilíbrio do Madeira.

“Nós consumíamos uma faixa de 100 a 150 toneladas de peixe por ano no município e exportávamos mais de 500 toneladas para Porto Velho e Manaus”, diz Barros. “Hoje, não está dando nem para consumir no município. É uma coisa fora do normal.”

Em Novo Aripuanã, a piramutaba subia o rio Madeira até três vezes por ano, mas desde a instalação das barragens “nunca mais vimos um cardume no nosso rio”, diz Barros. Ele também nota que os peixes diminuíram de tamanho: o filhote chegava a 80 quilos e a dourada, a 40, mas hoje não passam, respectivamente, de 10 e 6 quilos.

Além disso, os pescadores de Novo Aripuanã agora levam ao menos 24 horas para alcançar locais de pesca com alguma produtividade, nas lagoas do rio Aripuanã, e os barcos se limitam a uma capacidade de 10 toneladas devido à baixa produção.

Nesse contexto, o número de pescadores ativos da colônia passou de 2 mil para cerca de 1,1 mil.  “Os peixes estão longe e a despesa está muito grande”, considera Barros. “O município não tem gelo nem subsídio de diesel e gasolina. Não temos câmara frigorífica para armazenar o pescado, para vender o peixe mais barato na entressafra. Como o pescador vai longe pegar esse peixe e trazer para vender em conta?”

Os pescadores de Novo Aripuanã ainda não acionaram a Justiça para serem reconhecidos como atingidos pelas barragens. Mas Barros entende que a melhor compensação seria um repasse contínuo de recursos, por exemplo, via royalties – o repasse financeiro mensal feito pelas empresas à União, pelo uso dos recursos hídricos – ou um fundo de amparo, para que a cidade invista na “piscicultura de pequeno porte”, de modo a suprir a demanda de pescado, e disponha de recursos emergenciais para mitigar eventos extremos – como o que desponta no futuro próximo.

No encontro do Madeira com o Aripuanã, Raimundo Dias avalia que a seca histórica de 2023 contribuiu para uma pesca pouco produtiva na bacia do Madeira. Com pouco peixe no mercado, os preços de outros alimentos inflacionaram. “O frango chegou a R$ 50 ano passado. A farinha a R$ 40”, recorda Dias. Com o rio secando rápido, a expectativa é de mais um ano difícil. “Se secar mesmo até agosto, setembro, nós vamos ter uma crise muito grande aqui.”

A Ambiental Media procurou o Ministério de Minas e Energia (MME) e perguntou se alguma porção dos royalties destinados à União foi revertida em ações de mitigação ou compensação de impactos ambientais no Amazonas e se há alguma discussão em andamento para destinar uma parte dos recursos a municípios amazonenses afetados pela operação do complexo. Como resposta, o MME informou que cumpre as legislações que tratam do tema, ao realizar o repasse mensal dos percentuais legais do valor da energia produzida como compensação financeira, nos termos da Lei 8001/1990 e da Lei 9648/1998, mas, não respondeu aos questionamentos específicos sobre a situação desses municípios.

A reportagem também questionou se o Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) tem tido diálogos com pescadores e cientistas sobre a crise da pesca no Madeira, bem como ações planejadas ou em andamento para estudar e mitigar os impactos socioambientais. O MPA, em nota, respondeu apenas que “em especial ao rio Madeira, não temos este ponto de pulsos hídricos em discussão.”

A reportagem também solicitou posicionamentos ao Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima (MMA) e às administradoras das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, mas não recebeu resposta até a publicação.

Como essa reportagem foi produzida:
Kevin Damasio e Bruno Kelly embarcaram na expedição com apoio da Ambiental e da Mongabay, à convite da Universidade do Estado do Amazonas e do David Rockefeller Center for Latin America Studies at Harvard University (Escritório no Brasil do Centro David Rockefeller de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Harvard).

Colaboraram nesta edição:
Fernanda Lourenço, Miguel Vilela, Rodolfo Almeida e Sofia Beiras

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