Foto acima: Cecília Gontijo Leal / RAS
Por Cecília Gontijo Leal*
A colossal Amazônia é megadiversa até mesmo em suas minúcias. Os igarapés, como são chamados os pequenos cursos d’água da região, comprovam: alguns deles podem ter mais espécies de peixes de água doce do que países inteiros, como a Noruega ou a Dinamarca. E se você imagina esses redutos da biodiversidade como ambientes remotos no coração da floresta virgem, pense de novo, pois bastam poucas horas de carro entre a capital Belém e o município de Paragominas, com mais de 100 mil habitantes e intensa atividade agropecuária, para encontrar um igarapé capaz de causar inveja aos nórdicos.
Nessa mesma rota, é bastante provável que, algumas poucas dezenas de quilômetros adiante, haja outro igarapé com um conjunto de espécies de peixes diferente do anterior e, não raro, não encontradas em nenhuma outra parte da própria Amazônia. É que os igarapés são altamente diversos em sua fauna aquática e muito distintos entre si.
Há ainda outras razões que justificam sua conservação. Enquanto, em Brasília, o Supremo Tribunal Federal (STF) julga a constitucionalidade do novo Código Florestal, alterado em 2012, pesquisas recentes demonstram que a importância dos pequenos corpos d’água amazônicos é muito maior do que supunham os cientistas. Se a flexibilização da lei já era preocupante diante das informações disponíveis à época, sabemos agora que há muito mais em jogo.
Em algumas bacias hidrográficas, igarapés representam 90% de toda a extensão dos cursos d’água, além de serem as cabeceiras dessas intrincadas redes hídricas. Interligados em um sistema único, os impactos sofridos por eles em função da degradação florestal ecoam nos rios maiores, que, por sua vez, já estão impactados por grandes obras de infraestrutura, como as usinas hidrelétricas.
A relevância dos igarapés e seu alto nível de exposição às atividades humanas, em especial à agropecuária, foi tema de artigo que publicamos no periódico científico Journal of Applied Ecology. Vitais para as populações da Amazônia, os igarapés fornecem água potável para o consumo humano e para o gado; irrigação de cultivos de alto valor, como frutas e verduras; peixes para consumo e comércio ornamental; áreas de recreação e vias para deslocamentos.
Por serem biodiversos e singulares, a salvaguarda de alguns poucos igarapés no interior de unidades de conservação criadas pelo Estado, ainda que fundamental, não é representativa da sua fauna como um todo. Por outro lado, seria inviável ter 100% dos igarapés dentro de áreas protegidas. Assim, a solução é garantir sua proteção também nas propriedades privadas.
A grosso modo, a Amazônia brasileira está igualmente dividida entre unidades de conservação e propriedades privadas. Nas áreas particulares, o que vale é o Código Florestal. A legislação prevê maior proteção às matas ciliares (vegetação nas margens de rios, lagos e riachos), consideradas Áreas de Preservação Permanente (APPs). Só que esta é praticamente a única consideração voltada à proteção dos cursos d’água em geral.
Tampouco o fato de existir uma legislação específica para as APPs significa que estejamos quites com sua conservação. Estudos recentes apontam que, nas últimas décadas, no Pará, as matas ciliares foram comparativamente mais desmatadas do que as reservas legais (vegetação nativa mais distante das margens), o que evidencia falha no cumprimento da lei.
A versão atual do Código Florestal, que reduziu as reservas legais e as APPs e anistiou desmatadores, abriu ainda outras brechas. A primeira é permitir que as áreas de APPs sejam contabilizadas também como reserva legal, quando, na verdade, a presença de mata ciliar não substitui a necessidade das florestas mais distantes dos corpos d’água na propriedade – os igarapés precisam das duas.
A segunda lacuna é que reservas legais desmatadas podem ser compensadas por outras áreas no mesmo bioma, preferencialmente no mesmo estado. Acontece que os estados amazônicos são maiores do que boa parte dos países europeus e, para ser efetiva, a compensação precisa ser local.
Por fim, ainda restam as estradas de terra. Ao recortarem a paisagem sem planejamento e muitas vezes de forma clandestina, elas atropelam os igarapés com pontes mal construídas, manilhas improvisadas e desniveladas com o leito dos rios, causando a interrupção do fluxo natural da água, além de erosão e assoreamento. Enquanto a travessia de uma estrada em um igarapé possa parecer um impacto pontual, os efeitos negativos acumulados são relevantes. Nossas estimativas apontam mais de 3000 travessias de estradas de terra sobre igarapés apenas em Paragominas. Imagine o número em toda a Amazônia.
Não temos dúvidas de que os igarapés alterados podem gerar efeitos locais e acumulados de enorme proporção. E não se trata de atravancar o desenvolvimento do agronegócio brasileiro, mas sim de impulsionar o debate sobre estratégias adequadas de conservação e uso da terra. Em última análise, a legislação ambiental brasileira precisa ser fortalecida e cumprida. Este é o único caminho viável para assegurar o futuro dos rios da Amazônia.
* Cecília Gontijo Leal é bióloga do Museu Paraense Emílio Goeldi e integrante da Rede Amazônia Sustentável (RAS), iniciativa que reúne mais de 30 instituições científicas do Brasil e do exterior com o objetivo de promover a conservação e o uso sustentável da terra na Amazônia.
Como este artigo foi produzido: O texto é resultado de uma parceria entre a Rede Amazônia Sustentável (RAS) e a Ambiental Media, e foi publicado pelo jornal Nexo no dia 29 de Novembro de 2017. Este conteúdo pode ser replicado gratuitamente sob os créditos da Ambiental Media e dos autores (texto, foto, ilustração, edição). Os artigos publicados no site da Ambiental são de autoria de cientistas de diversas instituições. Todos os autores são colaboradores eventuais e sua opiniões não representam as opiniões da Ambiental Media. Para ter seu artigo publicado neste espaço, escreva para [email protected].
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