Indígenas perdem sua identidade nas prisões do Brasil

Foto acima: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Privados de seus direitos básicos e desrespeitados em suas práticas tradicionais de punição, os indígenas brasileiros engrossam, invisíveis, a população carcerária do país

Por Cristhian Teofilo da Silva e Gustavo Hamilton de Sousa Menezes*
Edição Xavier Bartaburu*

Os povos indígenas no Brasil possuem memórias de longa duração das diferentes formas como os colonizadores, de ontem e de hoje, tentaram transformar suas culturas e fazer desaparecer suas sociedades e identidades. Mas a violência assimilacionista dos brancos não se limita aos usos deturpados do boi, da bala e da Bíblia. Com o número crescente de indígenas sendo presos e mantidos nas prisões, seu encarceramento e o desrespeito aos seus direitos tornaram-se a nova arma dos brancos para avançar sobre seus territórios.

Há cada vez mais indígenas entre os detentos do Brasil. Os dados mais recentes, registrados pelo Departamento Penitenciário no final de 2016, computaram 590 índios encarcerados nas prisões do país. O que se constata na prática, contudo, é que esse número é muito maior, subdimensionado pelas estatísticas por razões semelhantes às que mantêm os indígenas apartados de seus direitos fundamentais na sociedade brasileira, mesmo fora das penitenciárias. A diferença é que, na cadeia, a situação se agrava ainda mais.

De cara, temos o fenômeno da descaracterização étnica: a identidade indígena dos detentos costuma ser tratada com pouca ou nenhuma importância pelos gestores do sistema carcerário – os quais, via de regra, não são orientados a manter registros sobre a diversidade étnica dentro das instituições prisionais, o que poderia ser feito por meio de formulário, por exemplo. O que ocorre é que, tão logo é detido, o indígena é deliberadamente incluído na categoria “pardo”, o que resulta na negação de direitos diferenciados. Muitos indígenas, por sua vez, também evitam se identificarem como tais, por temor ou desconfiança em relação a experiências negativas que tiveram no passado.

Foto: Cristhian Teofilo da Silva

Surge, desse modo, um efeito perverso da descaracterização étnica do indígena preso, que é a sua assimilação pelas instituições carcerárias como “aculturado” ou “integrado”, categorias obsoletas pautadas por elementos muito superficiais, como a posse de documentos de identidade, algum conhecimento do português, o uso de roupas e até mesmo a aparência física mestiça. Isso ocorre em toda a cadeia processual: na detenção pela Polícia Militar, na investigação pela Policial Civil, na acusação elaborada pelo Ministério Público, na construção da defesa pela Defensoria Pública, em decisões lavradas por magistrados, até, finalmente, chegar à realidade das penitenciárias.

O que resulta dessa invisibilização é que os índios encarcerados são privados do direito básico de serem tratados de modo diferenciado pelos sistemas de justiça e penitenciário, fato agravado pelo próprio desconhecimento dos profissionais da área jurídica. Isso inclui o direito a intérprete em um idioma que os ajude a compreender e ser compreendidos, a defensor público gratuito, à liberdade de expressão religiosa, ao consumo de alimentos tradicionais e até à flexibilização no cumprimento da pena.

Segundo a legislação vigente e acordos internacionais, recomenda-se que sejam aplicados aos indígenas outros tipos de punição além do encarceramento. E, para as penas de reclusão e de detenção, por exemplo, é recomendado o regime especial de semiliberdade, próximo ao órgão oficial de assistência ao indígena. Também devem ser reconhecidas as práticas indígenas de justiça, resolução de conflitos, punição e educação dos membros de suas comunidades. Este reconhecimento é fundamental em se tratando de grupos pequenos, onde o aprisionamento de homens e mulheres adultas provoca impactos profundos não somente para suas famílias, mas para todo o seu povo. O aprisionamento de lideranças indígenas, inclusive, tem servido como forma de desarticular politicamente a resistência indígena em áreas de conflito fundiário.

Em outras palavras, se há um reconhecimento do Estado brasileiro em relação à extensa diversidade étnica, cultural e linguística do país, deveria haver também o reconhecimento de uma ampla variedade de interpretações morais próprias dos povos indígenas e de como estas servem para a manutenção dos territórios e a continuidade dos seus povos. Cada sociedade tem sua ideia do que seria um “crime” e também todo um elenco de punições correspondentes a esses crimes.

Os Maxakali, por exemplo, povo que habita Minas Gerais, estão entre as etnias que insistem em manter suas práticas tradicionais, rechaçando alguns princípios do sistema jurídico brasileiro, entre eles as prisões. A prisão não faz parte do leque de punições aplicado pela comunidade. E, mais do que isso, a ideia de que um Maxakali esteja sendo mantido preso longe do seu povo enche de horror os demais membros desse povo, mesmo aqueles que estão em desavença com ele.

Dessa forma, o reconhecimento constitucional de que os povos indígenas têm organizações sociais próprias deveria nortear o Brasil na construção de uma política jurídica diferenciada, especialmente no que diz respeito à assimilação dos sistemas tradicionais de direito usados pelos índios para a resolução de conflitos. Como reforço dessa política, não custa lembrar o conteúdo da Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sancionada pela governo brasileiro em 2004, que incita as autoridades governamentais do mundo todo a reconhecer a integridade cultural dos indígenas e a assumir a responsabilidade sobre seus direitos. O direito à diferença é, aqui, a principal reivindicação. Não como uma regalia, mas como uma questão de dignidade e de reconhecimento de culturas que há séculos vivem sob o espectro do genocídio.

Cristhian Teófilo da Silva é antropólogo, professor e pesquisador da Universidade de Brasília, além de sócio efetivo da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Pesquisador Associado no Centro Interuniversitário de Estudos e Pesquisas Indígenas (CIÉRA/Université Laval). Fundador e coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Movimentos Indígenas, Políticas Indigenistas e Indigenismo (LAEPI) e fundador e pesquisador do Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas (OBIND). Realiza estudos comparados sobre políticas indigenistas e problemas sociais indígenas com mais de 40 artigos publicados em revistas científicas nacionais e internacionais.

Gustavo Hamilton de Sousa Menezes é doutor em antropologia social pela Universidade de Brasília, é antropólogo na Funai e Coordenador-Geral de Identificação e Delimitação pela mesma instituição. Membro efetivo da Associação Brasileira de Antropologia, participa do Comitê de Inserção Profissional do Antropólogo(a). Atualmente, realiza pesquisa sobre relações interétnicas, antropologia jurídica e criminalização indígena. É autor de vários artigos científicos no Brasil e no exterior.

Xavier Bartaburu é jornalista e fotógrafo. Registra o patrimônio cultural e ambiental brasileiro há mais de duas décadas. Foi editor na revista Terra e hoje produz conteúdo para livros, revistas e projetos institucionais ligados à preservação e à difusão da memória e das tradições culturais brasileiras. Tem cerca de 20 livros publicados.

Como este artigo foi produzido:O texto é fruto de uma parceria entre a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e a Ambiental Media, e pode ser replicado gratuitamente sob os créditos da Ambiental e da autora. Os artigos publicados no site da Ambiental são de autoria de cientistas de diversas instituições. Todos os autores são colaboradores eventuais e sua opiniões não representam as opiniões da Ambiental Media. Para ter seu artigo publicado neste espaço, escreva para [email protected].