Foto acima: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
O atual governo federal declarou guerra à ideologia de gênero, com frentes de batalha que vão do ensino básico à política externa, mas a visão que as ciências humanas tem do tema é profundamente distinta do embate consagrado nas redes sociais
Sérgio Carrara
Isadora Lins França
Em junho, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o Brasil se tornou o 43º país a criminalizar a homofobia. Em seu voto, o ministro Celso de Mello chamou a visão de mundo que pretende determinar os papeis sociais de homens e mulheres a partir de suas diferenças biológicas de “ideia artificialmente construída”. A reação imediata do atual presidente Jair Bolsonaro, ao chamar a decisão de equivocada e lamentar a ausência de um ministro evangélico no STF, dá a medida exata dos desafios à frente no trato com as questões de gênero e sexualidade. Até mesmo os diplomatas brasileiros estão oficialmente instruídos pelo Itamaraty a reproduzirem o entendimento do atual governo, para quem gênero é sinônimo de sexo biológico: feminino ou masculino – ainda que a ciência demonstre o contrário.
Esse cenário já estava claro desde o discurso de posse no Congresso Nacional, quando o presidente Jair Bolsonaro declarou que seu governo iria unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões, a tradição judaico-cristã e que, para isso, combateria a ideologia de gênero. Poucos dias depois, Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, surgiu em vídeo afirmando que se tratava de uma nova era no Brasil, em que menino veste azul e menina veste rosa. Questionada, a ministra disse à imprensa tratar-se de uma metáfora contra a “ideologia de gênero”. Só tem um problema: nesses termos, tal ideologia jamais existiu.
A ideia de que existiria uma ideologia de gênero foi gestada no âmbito da Igreja Católica durante a década de 1990, em reação ao uso do conceito de gênero em conferências internacionais de mulheres. Desde então, essa noção passou a permear nosso contexto político em diferentes momentos, sendo particularmente acionada em momentos eleitorais. Durante a campanha presidencial de 2018, novamente a suposta ideologia de gênero foi trazida ao centro do debate, associada a notícias falsas segundo as quaiso candidato à presidência Fernando Haddad, enquanto prefeito de São Paulo, teria distribuído um “kit gay” e até mesmo uma mamadeira fálica para crianças em escolas públicas.
Afirmou-se, então, a existência de uma espécie de doutrina cujo objetivo seria orientar crianças em relação à sua sexualidade e ensiná-las a não se identificarem como meninas ou meninos. Apesar de inverídica, a ideia provocou pânico. Instalado o medo, parte da população relacionou o conceito a uma imposição que desvirtuaria crianças. Tais reações – incluindo as do próprio presidente eleito e de autoridades do governo – persistem e têm sido recebidas pela comunidade científica com perplexidade e preocupação, sobretudo por estarem pautando políticas públicas. No Plano Nacional de Educação e em muitos planos municipais e estaduais suprimiu-se, por exemplo, gênero como tópico a ser abordado em sala de aula ou na formação de professores.
Para defender as crianças da suposta ideologia, pessoas comuns e políticos adotaram discursos que restringem as discussões relativas a sexo e gênero a uma perspectiva normativa. Dentro dessa concepção, gênero seria imutável: nasceu menina é menina; nasceu menino é menino. Busca-se também reforçar estreitas convenções sociais e culturais relacionadas a homens e mulheres –meninas devem vestir rosa, meninos devem vestir azul. Da mesma forma, coloca-se como norma única o relacionamento afetivo e sexual com pessoas do sexo oposto.
Há aqui uma diferença fundamental. Enquanto os inimigos da suposta ideologia de gênero concentram-se em definições rígidas em relação a gênero e sexualidade, a perspectiva científica tende a ampliar esses limites, saindo de uma postura impositiva. Na Antropologia, elaborações conceituais construídas a partir de conhecimento científico, desenvolvido em mais de um século sobre diferentes realidades sociais, levaram à conclusão de que não existem atributos de sexo, sexualidade e gênero essenciais, imutáveis e universalmente válidos.
A discussão sobre gênero e sexualidade na comunidade científica constata que, em vez de ser mera questão fisiológica, os significados de masculino e feminino e as convenções sobre sexualidade são resultado de complexos processos históricos, sociais e culturais. Tais processos são fruto de articulações constantes de normas, convenções e regulações, que variam segundo as sociedades. Em outras palavras, sempre houve diferentes modos de ser homem e de ser mulher e significados distintos sobre masculino e feminino ao redor do mundo. Acontece o mesmo em relação às sexualidades.
Em 1935, a antropóloga norte-americana Margaret Mead atestou que o comportamento de mulheres e homens varia conforme a sociedade em que se inserem. Seu estudo, feito na região asiática da Nova Guiné, mostra que, entre o povo Arapesh, homens e mulheres tinham caráter mais dócil; entre os Mundugumor, ambos eram agressivos; e, por fim, entre os Tchambuli, as mulheres eram mais dominadoras e os homens mais passivos.
Na sociedade brasileira, por sua vez, acreditou-se por muito tempo que as mulheres seriam por natureza menos inteligentes e racionais que os homens e, por isso, não podiam votar. Apenas a partir de 1932, após intensa mobilização feminista, as mulheres conquistaram esse direito, ainda assim facultativo para as que não exerciam atividade remunerada. A igualdade entre os votos, obrigatório para homens e mulheres, só entrou no Código Eleitoral de 1965.
Somente em 1879, as mulheres brasileiras obtiveram o direito a ingressar no ensino superior e, quando o fizeram, houve muito preconceito. Evelina Bloem Souto, por exemplo, primeira mulher a frequentar o curso de Engenharia Civil da Escola de Engenharia de São Carlos, em 1957, foi obrigada a vestir roupas masculinas e a desenhar barba e bigode em seu rosto para realizar uma visita técnica. Em relação ao vestuário, aliás, vale lembrar que a convenção social pela qual meninos vestem azul e meninas vestem rosa surgiu na Europa e nos Estados Unidos apenas no século XX como estratégia de mercado – publicitários e lojas de roupas consideravam rosa a cor ideal para os meninos, tida como mais forte.
Explorando a diversidade de condutas e valores sociais relativos à masculinidade e feminilidade, os estudos de gênero têm contribuído para a compreensão de sérios e complexos problemas sociais como a violência contra a mulher (às vezes denominada de violência de gênero), a discriminação e violência contra pessoas LGBT, os padrões de transmissão de doenças sexualmente transmissíveis, a violência sexual, as desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho, entre outros.
Na área da Educação, estudos têm registrado diferentes expressões relacionadas a gênero e à sexualidade nas salas de aula e à possibilidade de que essas expressões sejam vividas sem violência, de forma a não atentar contra os limites éticos e legais que regem a vida social. Isso auxilia educadores a compreenderem a importância do acolhimento da diversidade no espaço escolar, assim como a lidarem com desafios como a gravidez não planejada e a violência sexual contra crianças e adolescentes.
Os estudos de gênero têm operado em um horizonte que valoriza a defesa da pluralidade, dos direitos fundamentais, em especial a dignidade da pessoa humana, a cidadania e a paz. A liberdade de pensamento, ensino e pesquisa nessa área é fundamental para que os pesquisadores continuem contribuindo com o desenvolvimento científico e ético do país.
Com sólido conjunto de dados de pesquisa, os estudos de gênero têm contribuído para a crítica sistemática a certas concepções, convicções ou crenças sem verificação científica. Ironicamente, discursos que tomam como universais e naturais concepções particulares sobre o que é ser homem ou mulher poderiam ser, eles sim, chamados de “ideologia de gênero”, no sentido de defenderem pontos de vista restritos como verdades absolutas e indiscutíveis.
Sérgio Carrara é cientista social, doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e professor adjunto do Instituto de Medicina Social/UERJ. É também vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), integra o seu Comitê de Gênero e Sexualidade e o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos/UERJ.
Isadora Lins França é historiadora, doutora em Ciências Sociais pelo PPGCS/Unicamp e professora adjunta do Departamento de Antropologia/Unicamp. É também integrante do Comitê de Gênero e Sexualidade da ABA e pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp.
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